sábado, julho 03, 2010

Miriam Leitão Um passo à frente


Sentados no chão, com o mesmo uniforme verde e sorriso nos lábios, trabalhadores de uma fábrica japonesa no norte da China começaram uma greve na última terça-feira. Eles batiam palmas e entoavam palavras de ordem: "Queremos maiores salários! Queremos tratamento justo!" Policiais observaram apenas. O mercado de trabalho chinês passa por transformações inesperadas

A crise de 2008 atingiu em cheio a economia chinesa, que teve seu ritmo de crescimento reduzido de 12% para 6% no pior momento. Com o aumento do endividamento das famílias americanas e europeias, as exportações chinesas perderam seus principais mercados. A saída para voltar ao crescimento forte foi o estímulo ao mercado interno. Greves não são permitidas pelo governo, mas melhores salários podem ajudar a estratégia de aumentar o poder de consumo da população. Além disso, tem crescido a pressão por novos padrões de direitos trabalhistas no país, com o mundo forçando a China a mudar o uso da mãodeobra barata, em alguns casos, quase escrava.

— O governo chinês não tem estímulo para reprimir uma manifestação espontânea e que converge com a retórica do partido comunista de que é preciso incentivar o crescimento com foco no consumo.

Além disso, eles não estão dispostos a ir contra os trabalhadores a favor de uma empresa estrangeira — afirmou o consultor Dani Nedal, da Strategus.

Desde fevereiro, relatos de greves em fábricas na China surgem no noticiário.

O fato que mais chamou atenção foi o trágico caso da Foxconn Technology, uma fabricante de componentes eletrônicos fornecedora de empresas como Dell, Hewlett-Packard e Apple.

Por maiores salários e melhores condições de trabalho, os chineses praticaram um ato extremo: dez operários cometeram suicídio.

Até Steve Jobs, presidenteexecutivo da Apple, foi obrigado a se manifestar.

Em maio, houve greve na Honda, que forçou a empresa a paralisar a produção.

Em junho, outra paralisação em uma subsidiária da Toyota.

Em todos os casos, os trabalhadores foram atendidos.

A Honda concedeu aumento de 24%, elevando os salários de US$ 226 para US$ 280, cerca de R$ 504. Na Foxconn, os reajustes foram de 33%. O salário-base para um trabalhador da linha de montagem da empresa aumentou de US$ 132 para US$ 176.

Conquistas trabalhistas são recentes na China. A implementação do saláriomínimo, por exemplo, aconteceu em 2004. O valor não é uniforme no país, cada província tem autonomia para estabelecer quanto ganhará o trabalhador.

Na província de Shenzhen, onde ocorreram os suicídios na Foxconn, o saláriomínimo é de US$ 120. Pequim elevou recentemente a remuneração em 20%, mas a taxa ainda é baixa: US$ 140, cerca de R$ 250, menos da metade do saláriomínimo brasileiro.

— Os salários-mínimos mais altos são os de Xangai e Guangdong. Este ano, 14 províncias já anunciaram aumentos, que vão de 15% a quase 30% — disse Nedal.

De acordo com o Departamento de Estudos Econômicos do Bradesco, os reajustes salariais têm sido frequentes nos últimos anos, em torno de 15%. Isso tem acontecido porque a população chinesa está envelhecendo, diminuindo a oferta de trabalhadores. A geração de filhos únicos nascidos na década de 90 começa a entrar na força de trabalho.

Segundo reportagem do "New York Times", o total de jovens entre 15 e 24 anos no mercado de trabalho cairá 30% em dez anos.

A crise também forçou o governo a criar empregos no interior, para atender a expansão da infraestrutura. Isso aumentou a competição entre as empresas por empregados nas grandes cidades. A reorientação do crescimento para o mercado interno fez o governo chinês flexibilizar o Sistema de Registros de Moradias, que serve para controlar a migração urbana no país. Os chineses não têm liberdade para mudar de cidade sem consentimento do governo. Quem faz isso sem permissão fica burocraticamente excluído do mercado de trabalho.

A análise do banco Morgan Stanley é de que a flexibilização nessa lei tem permitido a migração urbana para cidades pequenas e médias no interior. Isso tem diminuído a oferta de trabalhadores na região Sul, onde estão concentradas as grandes multinacionais.

"A crise de 2008 e o impacto na economia chinesa tornou imperativo para o país promover a demanda interna como foco de sustentação do crescimento.

Nesse cenário, o processo de urbanização será intensificado e o governo já está removendo barreiras legais de migração que imperavam no país desde os anos 50", diz o Morgan.

Com essa nova política, o crescimento da urbanização chinesa deve passar de 1% para 1,5% ao ano, segundo o Morgan, o que elevará a urbanização de 46%, hoje, para 63% em 2020.

O mundo olha com atenção o que se passa na China porque durante muitos anos os produtos baratos chineses derrubaram preços em outros países. A pergunta que se faz é se o aumento do custo da mão-de-obra fará com que a China deixe de "exportar" deflação.

"Até agora, os aumentos de renda não viraram inflação porque foram em grande parte compensados por ganho de produtividade.

Daqui para frente, esta história deve gradativamente se reverter. Ou seja, a inflação de serviços poderá de fato ser uma preocupação de médio e longo prazo", disse o Bradesco.

Greves e manifestações podem atender ao que a política econômica quer nesse momento, aumento do poder de compra da população.

Mas elas podem ser combustíveis para outras reivindicações que o fechado modelo político da China nem pensa em conceder