O Globo
Aqui na ilha, não temos ficado indiferentes à questão do uso da tecnologia nas Copas. Aliás, ao contrário do que insinuam maledicentes, Itaparica sempre foi muito ligada à tecnologia de ponta, apesar de circunstâncias frequentemente desfavoráveis, como no meu tempo de menino, em que só tínhamos energia elétrica do escurecer até as dez da noite. Não nos deixávamos abater e nos esforçávamos para absorver da tecnologia tudo o que era possível. Por exemplo, assistíamos ao funcionamento da bomba de gasolina a manivela do posto de Waldemar, o único da ilha.
Era um programaço, com os números rodando e barulhinhos de ficção científica pontuando a função. Dava para encher a manhã inteira, quando não havia uma pelada a disputar.
Além disso, muitas das coisas que, fora da ilha, parecem novidades aqui já são fartamente conhecidas, desde os antigos. Gabam-se os americanos, por exemplo, de terem mandado um homem à Lua, façanha, aliás, de que muita gente boa duvida. Houve quem assistisse à tal chegada na televisão, mas, como sintetizou admiravelmente Waltinho Filósofo, o fundador da Escola Filosófica do Sorriso de Desdém, "ninguém viu lua nenhuma, só viu um sujeito de escafandro", de maneira que o ceticismo parece ter razão, fazendo jus, os tais americanos embusteiros, a um vasto sorriso de desdém. Itaparica não mandou homem nenhum à Lua, mas fez melhor, como confirmarão os que, da mesma forma que eu, ouviram da boca do próprio finado Lamartine a celebrada narração dos foguetes.
Nessa época, começo do século XX, Lamartine, ainda mocinho, já se notabilizava por seu talento e esmero na confecção dos melhores foguetes de todo o Recôncavo Baiano. Cada foguete seu era uma obra de arte individual, até mesmo na fabricação da pólvora, que não era comprada na mão de fornecedores, mas feita e temperada por ele mesmo, segundo uma fórmula secreta dos portugueses, que descobrira numa escavação junto à fortaleza de São Lourenço.
Não tinha mãos a medir em encomendas de festas de santos, inaugurações, feriados, comícios, grandes casamentos, grandes aniversários e tudo mais que exigisse foguetório de alta qualidade. Eram esplêndidos foguetes, daqueles cuja carga explosiva sobe amarrada a uma vareta ou taquara, chamada de flecha.
E não foi assim que, já coberto de glória pirotécnica, Lamartine resolveu dar um capricho extra, na confecção dos foguetes para a festa cívica do Sete de Janeiro, data magna da ilha e da nacionalidade. Mas a decepção foi geral, quando foguete após foguete subia e sumia no espaço.
Nem se ouviam as explosões, nem as flechas caíam de volta no chão. Chabu total, impensável fiasco? Estaria Lamartine d e s m o r a l i z a d o ? E l e p r ó p r i o c o n f e s s a v a aos ouvintes que chegara a duvidar, a achar que tinha errado no preparo dos foguetes.
Bem, de fato, tinha, como se viu logo em seguida, só que o erro fora por exagero na mistura da pólvora, rompante natural da juvent u d e , q u e e l e a g o r a compreendia. Porque, na hora em que já ia desculpar-se com o prefeito e as outras autoridades presentes na festa, finalmente caiu uma flecha, que se cravou no chão, bem junto a eles. Só que não era apenas a flecha, havia um papel espetado nela. Conferiram, era um bilhete. O bilhete dizia o seguinte: "Prezado Lamartine, não solte mais seus foguetes, que estão me furando o céu. Seu criado, Pedro Apóstolo." A mesma coisa pode ser dita de outros avanços, que para nós não são nem tão avanços assim, como as comunicações eletrônicas. De novo, vem à tona o nome de Waltinho Filósofo, que criava pombos-correios extraordinários, os quais não só levavam cartas, como procuravam os números das casas dos destinatários, tomavam recibo e só faltavam vender selos. Um desses pombos, de acordo com alguns testemunhos, foi alistado na Força Expedicionária Brasileira e serviu com distinção na Itália, onde, por sinal, montou pombal com uma pomba romana e morreu de morte natural, condecorado e cercado de grande consideração. Como se vê, ninguém pode nos ensinar nada em matéria de tecnologia, nem o nosso conservadorismo, quanto a seu uso no futebol, pode ser atribuído a um pretenso atraso.
No bar de Espanha, a discussão sobre o tema vem ocupando as atenções e a opinião mais ouvida é que o futebol está gravemente ameaçado em um de seus principais fundamentos, nomeadamente o juiz ladrão. A convicção de quase todos é de que, sem o juiz ladrão, torcer vai ficar muito difícil. O sempre respeitado parecer de Toinho Sabacu, conhecido por seu equilíbrio, foi o primeiro a manifestar-se.
— Por exemplo — disse ele — que seria da torcida do Bahia, se não fosse o juiz ladrão? A indagação suscitou imediata indignação da parte da torcida atingida, até porque todo mundo sabe que Sabacu é Vitória. Somente a interferência de Zecamunista é que restaurou a harmonia. Sem o juiz ladrão, nada seria da torcida do Bahia e nada seria da torcida do Vitória, argumentou ele. Era a dialética mais uma vez em ação, funcionava para qualquer time. Sim, senhores, onde ficaria o torcedor que vê seu time derrotado, se não pudesse botar a culpa no juiz? E o pênalti não marcado, o falso impedimento, o tiro de meta que vira escanteio, o cartão amarelo mal aplicado? — Mas não se enganem, não — advertiu ele, para finalizar. — Se ninguém reagir, esse pessoal da tecnologia vai acabar inventando uma máquina para botar no lugar do juiz. E a Copa vai terminar sendo um torneio de videogame, é o que eles querem
A opinião mais ouvida é que o futebol está gravemente ameaçado