O ESTADO DE SÃO PAULO - 21/02/10
A prisão do governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, é um marco na História brasileira. Nos nossos ciclos democráticos não há caso de detenção de uma autoridade com tão alto grau de responsabilidade. Seixas Dória, governador de Sergipe, e Miguel Arraes, governador de Pernambuco, foram apeados do poder em 1964 e presos, mas por uma ditadura. Mais recentemente, Jackson Lago, do Maranhão, Marcelo Miranda, do Tocantins, e Cássio Cunha Lima, da Paraíba, tiveram o mandato cassado, mas não foram presos. Se a detenção de Arruda não gerou impacto à altura da magnitude do evento foi porque os tambores do carnaval abafaram este último samba de Brasília. E também porque o desfile de gente importante na entrada de cadeias, seguido da soltura dos detidos após algumas semanas, passou a ser corriqueiro no cotidiano da agenda social e política. Mas a dança que o governador ensaiou - a partir de cenas explícitas de recebimento de dinheiro e corrupção de testemunha - tende a arrastar para o mesmo salão deputados distritais, secretários e assessores, num dos maiores imbróglios de nossa política, e, para complicar, em pleno ano eleitoral, quando o eleitor está mais atento ao comportamento de atores no palco.
O principal mandatário da capital federal é o governador. E o símbolo mais elevado da política nacional é Brasília, cuja estética se finca no sistema cognitivo dos brasileiros pela arquitetura de Niemeyer, que se expressa nas curvas dos palácios do Planalto e da Alvorada e nas cúpulas côncava e convexa do Congresso Nacional. Parcela desse traçado modernista, exibido como cartão-postal do País, se impregna nas vestes do governante da capital federal, também visto como anfitrião. Ora, ao ser trancafiado, o condômino-chefe de Brasília corrobora a ideia de que a velha política não é requisito de grotões e fundões, onde os costumes são regrados pela lei do toma-lá-dá-cá. E assim o governador, envolvido no episódio da violação do painel do Senado, que redundou na renúncia ao mandato de senador em 2001, contribui para expandir a descrença social na representação política. Mas o affaire, sob outra leitura, melhora a percepção de uma das mais repudiadas mazelas nacionais, a impunidade. A tolerância à corrupção e a falta de castigo para os delitos estão por trás das causas da má fama dos políticos. Se a sinalização é de que as mazelas "não são mais passíveis de ser escamoteadas", como lembra o ministro Marco Aurélio Mello, do STF, que rejeitou o pedido de libertação de Arruda, renasce a esperança de que a Justiça finalmente bate à porta de todos os brasileiros.
A verdade é que o Poder Judiciário tem dado sua contribuição para o crescente distanciamento entre sociedade e esfera política. Por aqui, desde o passado mais longínquo, se cultiva a ideia de uma Justiça leve com os ricos e pesada com os pobres, na lição do filósofo Anacaris: "As leis são como as teias de aranha, os pequenos insetos prendem-se nelas e os grandes rasgam-nas com facilidade." Não se trata apenas da incapacidade ou disposição do Estado de fazer cumprir a lei, mas da existência de normas consideradas benevolentes ou inconsequentes para com os crimes. Benevolência, aliás, sempre fez parte de nossa cultura normativa, principalmente quando voltada para assistir os habitantes mais elevados da pirâmide social. Em 1549, para dar exemplo de que a lei chegava para valer, Tomé de Souza, o governador-geral, mandou amarrar um índio na boca de um canhão, que o atirou pelos ares em pedaços. Encheu de pânico os tupinambás, mas as atrocidades eram tantas na época que o perdão acabava chegando aos criminosos - com exceção dos crimes de "heresia, sodomia, traição, moeda falsa e morte de homem cristão". O instituto do perdão, da tradição portuguesa, era usado para fins de povoamento. O velho Tomé chegou a confessar, em carta ao rei, a dificuldade de mandar enforcar pessoas de que necessitava - "e que não me custem dinheiro", escreveu. Precisava delas para os ofícios cotidianos.
Quem se der ao exercício de examinar a balança da Justiça vai perceber que a balbúrdia, o jogo de conveniências e o descumprimento do estatuto legal - que descambam para a insegurança institucional - fertilizaram o solo jurídico desde os tempos idos. Práticas coloniais, regadas com água das fontes do mandonismo, inviabilizaram ou fizeram curvas na aplicação da lei, acompanhando o ritmo do progresso. Códigos como o Criminal e o de Processo Criminal, implantados no Império, resistiram ao tempo, chegando quase incólumes à atualidade. Por mais que o império da lei seja hoje a palavra de ordem, a moldura d"outrora se faz presente no "abandono de princípios, na perda de parâmetros, na inversão de valores, no dito que passa pelo não dito, no certo pelo errado", conforme palavras do ministro Marco Aurélio. Daí a importância, neste momento, do papel do STF, porquanto dele se espera o regramento definitivo que balizará comportamentos e atitudes. Figurões de todos os naipes terão de se curvar diante do altar da Justiça. Só assim será possível quebrar a corrupção banalizada que devasta a gestão pública.
No ano do 50º aniversário de Brasília, a figura do seu governador no xadrez é emblemática. A imagem é a do último fio de um rolo que vem sendo puxado por gente de diferentes calibres partidários - incluindo os mensaleiros do PT - flagrada pela tecnologia a serviço da moralidade. Ao fundo vê-se um corpo cívico que clama por ética na classe política. José Roberto Arruda sai do governo para entrar na História como o primeiro governador preso por corrupção. Em 1860, o viajante suíço Johan Jakob von Tschudi, ao passar por aqui, indagava: "Quantas vezes aconteceu no Brasil de um homem rico e influente sentar-se no banco dos réus a fim de se justificar por seus crimes?"
Se, naquela época, fidalgos fossem condenados à forca, como escravos, índios e peões, hoje seguramente não teríamos episódio tão degradante quanto este que mancha o Palácio do Buriti.