Ao conceder asilo político ao terrorista italiano Cesare Battisti, condenado à prisão perpétua em seu país pelo assassinato de quatro pessoas nos anos 70, Lula invocou o conceito de soberania nacional. "A decisão do Brasil neste episódio é soberana", disse, em Corumbá, ao lado do presidente Evo Morales, da Bolívia. Lula alegou que o Brasil é "generoso" e Battisti foi sentenciado por crime antigo. "Quem o acusou nem existe mais para ser comprovada a veracidade do fato. Passado tanto tempo, ele já é outra pessoa, é um escritor", concluiu.
A generosidade presidencial, contudo, é seletiva. Atletas cubanos, fugitivos da "democracia" dos irmãos Castro, receberam tratamento bem diferente: foram deportados sob a surrealista alegação de que, de fato, desejavam ardentemente retornar à casa paterna.
O ministro Tarso Genro, braço do presidente Lula para operações ideológicas mais escancaradas, contrariou recomendações do procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, que defendera a extradição do criminoso italiano, e desprezou o parecer do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) - órgão do Ministério da Justiça -, que negara o pedido de refúgio de Battisti. Assumiu, além disso, o lamentável papel de corregedor da Justiça italiana, criticando a forma como Cesare Battisti fora julgado e condenado em seu país. Disse ele que o italiano "pode não ter tido direito à própria defesa, já que foi condenado à revelia". A Itália, ao contrário de Cuba, vive em plena democracia, suas instituições funcionam e o direito de defesa é amplamente garantido. Não teria sido mais prudente devolver Battisti e deixar a própria Justiça italiana decidir sobre a conveniência ou não de reabrir o processo?
A justificativa do ministro da Justiça, que provocou visível constrangimento no Itamaraty, não apenas arranha a imagem do Brasil. É mais grave. Desnuda as verdadeiras intenções de um governo com perfil autoritário e recorrentes sonhos de perpetuação no poder.
A opção ideológica do presidente da República, intencionalmente camuflada pela habilidade do seu marketing político, não consegue impedir alguns rompantes de sinceridade. Foi o que aconteceu no recente giro eleitoral de Lula em prol dos caciques bolivarianos. O presidente da República, que diz que não quer para si um terceiro mandato, não poupou elogios à tentativa de reeleição indefinida do presidente Hugo Chávez. Lula, ostensivamente, assumiu o papel de cabo eleitoral dos caudilhos do continente. Foi à Bolívia dar um ânimo à campanha de Evo Morales para aprovar a sua Constituição. E encerrou a viagem na Venezuela, onde declarou que "Chávez é jovem e aguenta um novo mandato".
Não é de hoje a fina sintonia de Lula com governos autoritários. O Foro de São Paulo, entidade fundada por Lula e Fidel Castro, entre outros, e cujas atas podem ser acessadas na internet, mostra que não há acasos. Assiste-se, de fato, a um processo articulado de socialização do continente de matriz autoritária. Tal processo passa, provavelmente, por uma tentativa de terceiro mandato do presidente Lula.
Por outro lado, Lula manifesta crescente insatisfação com o trabalho da imprensa. Para o presidente da República - um político que deve muito à liberdade de imprensa e de expressão -, jornalismo bom é o que fala bem. Jornalismo que apura e opina com isenção incomoda, irrita e "provoca azia". Está, na visão de Lula, a serviço da "elite brasileira". Reconheço, no entanto, que Lula não é um crítico solitário da mídia. Políticos, frequentemente, não morrem de amores pelo trabalho dos jornalistas. Felizmente. A democracia só se desenvolve quando existe uma sadia tensão entre a mídia e o poder.
Na verdade, cabe à imprensa um papel fundamental na salvaguarda da democracia. Devemos, sem engajamento ou atitudes de contrapoder, aprofundar fortemente no processo de apuração. A defesa da liberdade passa pela guerra ao jornalismo declaratório e pela promoção da investigação de qualidade. Não tenhamos receio das renovadas tentativas de atribuir à imprensa falsos propósitos golpistas. Trata-se de síndrome persecutória, uma patologia política bem conhecida. As comparações com o tratamento dado ao governo FHC não colam. Na verdade, o ex-presidente, sobretudo no período da sua reeleição, não foi tratado com caviar pelos meios de comunicação. Apanhou. E muito.
A transparência informativa, ao que parece, é a causa dos problemas de natureza gástrica que incomodam o presidente da República. É uma pena. Em governos verdadeiramente democráticos a imprensa livre é sempre saudada com respeito e simpatia.
A biografia do presidente Lula foi construída graças aos seus méritos pessoais e aos amplos espaços que a democracia oferece a todos os cidadãos. Mas o poder fascina e confunde. E os bajuladores, de ontem, de hoje e de sempre, são o veneno da democracia. Preocupa, e muito, o entusiasmo do presidente da República com modelos políticos capitaneados por caudilhos.
Os brasileiros apreciam a democracia. Assim como condenaram a ditadura direitista de Pinochet, não aceitam projetos autoritários que, sob o manto da justiça social, anulam um dos maiores bens da vida: a liberdade. Presidentes, mesmo carismáticos e supostamente bem-intencionados, passam, mas as instituições democráticas ficam.
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