sábado, novembro 01, 2008

Estados Unidos A força das urnas poderá amenizar a crise?

O voto contra a crise

Quando a maior economia do planeta põe em
ação a mais genuína máquina democrática do
mundo, a pergunta é: o poder das urnas pode
amenizar a recessão que já apareceu na esquina?


André Petry, de Nova York

Fotos Emmanuel Dunand/AFP, Carolyn Kaster/AP e Mark Lennihan/AP

A RETÓRICA PEDESTRE
Obama e McCain: nos discursos finais, um só fala no fim da era da "ganância e irresponsabilidade" e o outro só promete reduzir impostos – nada resolve a crise



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Eleição nos EUA

Cinco dias antes da eleição que vai escolher o 44º presidente dos Estados Unidos, saiu o número que todo mundo previa e todo mundo temia: os americanos, cuja alegre gastança vinha sendo o motor da economia mundial, pararam de pôr a mão no bolso – e fizeram o fantasma da recessão aparecer na esquina. O consumidor americano não reduzia seus gastos desde os tempos do governo de Bush pai (1989-1992). A redução não era tão aguda desde o de Jimmy Carter (1977-1980). E o índice de confiança do consumidor americano não ficava tão baixo desde o presidente Lyndon Johnson (1964-1968). Com o desastre se avizinhando às vésperas da eleição, a esperança dos americanos – e do resto do mundo – é que a realização do pleito, nesta terça-feira, possa, por si só, produzir um efeito psicológico capaz de apaziguar a crise financeira. Será? Será que o voto, com sua energia renovadora, pode levantar um dique de contenção da crise?

A campanha eleitoral começou quente a respeito da guerra no Iraque, mas terminou fervendo sobre o desarranjo financeiro. Mesmo com as atenções cada vez mais voltadas à economia, os candidatos têm feito discursos pedestres que não ajudam muito a projetar o futuro. O democrata Barack Obama, líder nas pesquisas, sente-se mais à vontade para tocar no assunto, mas só fala que, com sua vitória, chegará ao fim a era da "ganância e irresponsabilidade". O republicano John McCain, que chegou a confessar sua ignorância sobre assuntos econômicos quando essa confissão não tinha lá tanta importância, prega a redução dos impostos e não pára de dizer que seu adversário vai aumentar os impostos, vai aumentar os impostos e vai aumentar os impostos. Qualquer um sabe – inclusive os dois candidatos – que nem o fim da ganância nem a moleza tributária vão resolver a crise. Por isso, o efeito da eleição é, para dizer o mínimo, uma aposta insondável.

Kevin Lamarque/Reuters

ARMADILHA IDEOLÓGICA
Bush: ele estava certo em soltar o mercado e estimular a compra da casa própria. Mas, preso à sua fé, só não soube a hora de parar

"Estamos enfrentando dois problemas objetivos: um sistema bancário quebrado e excesso de investimento em alguns setores, como a construção civil", explica o economista brasileiro José Alexandre Scheinkman, professor da Universidade Princeton. "Nenhum otimismo em relação à eleição vai reorganizar o sistema bancário ou criar demanda para todas as casas que foram construídas." Ninguém sabe como estará a economia – americana e mundial – quando chegar a posse do novo presidente em 20 de janeiro do ano que vem. Talvez nem nessa data, com todo o dinamismo que um governo recém-eleito costuma produzir, o cenário econômico apresente mudanças substanciais. "Mesmo depois da posse, o novo governo ficará ocupado em estabelecer sua agenda e seus compromissos e levará um tempo para conceber e mapear sua estratégia", diz o economista Paul Romer, da Universidade Stanford (veja a opinião de outros especialistas abaixo).

Desde que o Brasil se deixou hipnotizar nos anos 80 pela idéia de que a inflação era fundamentalmente um fenômeno psicológico – e isso ajudou a dar sobrevida exagerada àquela maldição econômica –, é bom mesmo não achar que apenas a democracia bem vivida resolve todos os problemas. Não resolve. Até porque a China está aí para provar que um capitalismo dinâmico pode existir em um regime de pouca ou nenhuma liberdade política. Mas a questão não é essa. Não se trata de esperar que um novo presidente na Casa Branca resolva tudo. Ele apenas ajuda a não piorar tão depressa, agindo sobre aquilo que tem, sim, efeito no desempenho econômico dos países: a percepção de que há um rumo. O certo é que a política e a economia não são mundos independentes um do outro, sobretudo nos Estados Unidos. Entre as muitas peculiaridades da história americana, uma das mais notáveis é que o capitalismo e a democracia nasceram juntos. Nos demais países, o Brasil incluído na lista, os rudimentos da economia capitalista apareceram antes, em alguns casos 200 ou até 300 anos antes, dos primeiros sinais de construção de um regime democrático. Nos Estados Unidos, portanto, faz mais de dois séculos que voto e dinheiro se acompanham. Um estudo já clássico dos economistas suíços Manfred Gärtner e Klaus Wellershoff mostrou que até o valor das ações na bolsa tende a oscilar segundo um ciclo de quatro em quatro anos, o que coincide com as eleições presidenciais. Examinando um período de três décadas, de 1960 a 1990, eles descobriram que as ações caíam na primeira metade do governo e subiam na metade final. A variação, comprovaram, se dava em valores reais e nominais, sob governos democratas ou republicanos.

Hulton Archive/Getty Images

O HOMEM DO NEW DEAL
Roosevelt, em 1938, saudando a bandeira: ele também não disse o que faria se fosse eleito, mas quando chegou lá mudou o destino dos EUA

O cientista político Larry Bartels, da Universidade Princeton, encontrou outros dados demonstrando esse bailado às vezes tenso entre eleição e mercado. Em seu livro Democracia Desigual, analisando a renda média dos americanos, Bartels comprovou que os presidentes republicanos fizeram a desigualdade de renda aumentar, enquanto os presidentes democratas fizeram o contrário. Ele – que, para fugir do bombardeio partidário, já avisa que seu último voto foi em 1984, e a favor do republicano Ronald Reagan – identificou que, do fim dos anos 1940 ao começo da década de 1970, período de hegemonia democrata, ricos e pobres aumentaram suas rendas entre 2,4% e 2,7% ao ano. De 1974 em diante, com a predominância dos republicanos, os do cume da pirâmide ganharam bem mais do que os da base. Bartels reconhece que a oscilação da renda sofre outras influências, da tecnologia à globalização, mas, diz ele, "o padrão republicano e democrata é tão constante que fica difícil atribuir tudo à coincidência cronológica".

De certo modo, a raiz da atual crise financeira está numa armadilha ideológica montada pelo presidente George W. Bush. Já se disse tudo sobre a aversão de seu governo à regulação dos mercados, que faz parte de seu ideário de liberdade econômica e ajudou a paralisar o governo no estouro da crise em Wall Street. Mas houve outra mola propulsora: o empenho de Bush em aumentar o número de americanos com casa própria, cujos preços entraram numa espiral histórica no seu governo (veja o quadro abaixo). "A casa própria é parte do sonho americano", diz o cientista político Timothy Frye, da Universidade Colúmbia, estudioso da ascensão dos mercados nos países ex-comunistas. "Bush queria dizer: ‘No meu governo, o porcentual de proprietários de casas aumentou para tanto. É um número político’." Deixar o mercado solto e estimular a aquisição da casa própria são medidas acertadas. A armadilha de Bush é que, movido por sua fé, não soube a hora de parar.

Com a convivência entre capitalismo e democracia desde seu surgimento, os Estados Unidos são um exemplo perfeito para o estudo da influência de um sobre o outro, e nem sempre eleição e mercado andaram na mesma direção. "Os americanos são avessos a controles porque seus negócios são livres", explica o economista Bruce Scott, da Universidade Harvard, que está escrevendo um livro sobre capitalismo e democracia. Ele dá um exemplo da tensão entre a política e a economia. "Entre 1901 e 1912, dois presidentes tentaram baixar regulamentos sobre os negócios dos fazendeiros. Tentaram por onze anos. E nenhum conseguiu." Isso mostra que os governos, mesmos os recém-eleitos, nem sempre fazem o que querem e se enredam em barreiras políticas intransponíveis. Nos Estados Unidos, a força do lobby, do dinheiro e dos chamados "interesses especiais" exerce hoje em dia uma influência tão fabulosa sobre o Congresso que já há especialistas dizendo que é preciso contê-la sob pena de comprometer os fundamentos da democracia.

Como o lobby é regulamentado nos Estados Unidos, os números não são obscuros como no Brasil. Na metade dos anos 50, havia 5 000 lobistas registrados em Washington. Nos anos 70, eram 10 000. Nos anos 90, 20 000. Hoje, são 35 000 – o que dá quase setenta lobistas para cada parlamentar. É por isso, pela força do lobby, que os Estados Unidos dão subsídio à lã feita do pêlo de cabra angorá. A história é ilustrativa. O subsídio de 100 milhões de dólares anuais começou nos anos 50, quando a lã, usada nos uniformes militares, era considerada estratégica. Na década seguinte, com o surgimento das fibras sintéticas, o Pentágono se desinteressou pelas cabras angorás, mas o subsídio ainda durou mais três décadas. Quando o caso veio à luz na imprensa em 1993, o subsídio caiu. Logo depois, quando o caso voltou ao escuro, o subsídio foi restabelecido. É menor, tem de ser renovado anualmente, mas o lobby venceu. A pátria mundial do livre mercado protege a lã da cabra angorá.

Como se vê, a democracia produz distorções sobre o capitalismo, e vice-versa, mas nunca é demais lembrar que se trata de um dulcíssimo problema. Afinal, a alternativa à democracia é a ditadura, coisa que o mundo vem consistentemente enterrando – hoje, dois terços dos países do planeta vivem sob regimes democráticos. E a alternativa ao capitalismo é o comunismo, que o mundo consistentemente já enterrou, apesar da existência agônica de Cuba ou da Coréia do Norte. Assim, voltando aos doces problemas, as pesquisas indicam que, com a eleição desta semana, os democratas devem fazer maioria na Câmara e no Senado. Se, como as pesquisas também indicam, Barack Obama for eleito o novo presidente, os democratas, depois de um longo inverno, voltarão a controlar simultaneamente a Casa Branca e o Congresso. O resultado de tamanho predomínio é uma incógnita, já que nem sempre um Congresso democrata (ou republicano) é um cartório ratificador das ordens de uma Casa Branca democrata (ou republicana).

A previsão das pesquisas, no entanto, açulou a imaginação política americana. E ajudou a estimular uma onda de comparações com Franklin Delano Roosevelt, que governou o país de 1933 até sua morte, em 1945. Roosevelt foi eleito para administrar uma crise econômica profunda, era democrata, tinha maioria na Câmara e no Senado – e saiu da Casa Branca para o túmulo consagrado como uma grande figura histórica. É certo que o eleito, seja quem for, terá pela frente um desafio semelhante ao enfrentado por Roosevelt. Tal como agora, Roosevelt, em seu tempo, também não detalhou durante a campanha as medidas que adotaria caso fosse eleito. Chegando à Casa Branca, não demorou a lançar seu hoje célebre New Deal, o plano que fez tudo o que precisava ser feito: venceu a depressão dos anos 30, venceu a II Guerra Mundial e colocou o país na rota da superpotência que é hoje. Nesta semana, logo depois da eleição, não se saberá se o eleito será um novo Roosevelt. Mas não há dúvida que terá pela frente aqueles tempos ásperos que só dão espaço aos extremos: candidatos ao esquecimento ou grandes líderes históricos.

"Infelizmente, mesmo uma vitória arrasadora não mudará muito as coisas. Até a posse do eleito, em janeiro, teremos de lidar com a incerteza e a falta de liderança. Mesmo depois da posse, o novo governo ficará ocupado em estabelecer sua agenda e seus compromissos e levará um tempo para conceber e mapear sua estratégia. Por isso tudo, receio que não exista razão para esperar uma mudança forte na dinâmica da crise logo após a eleição."
Paul Romer, professor de Stanford
"Crises financeiras não são importantes, a menos que conduzam a políticas ruins, como aconteceu no Japão em 1991 e no México entre 1980 e 1981. As crises financeiras na Finlândia e na Suécia, em 1992, e antes no Chile, entre 1980 e 1981, levaram a boas políticas e a bons tempos. Com a eleição de agora, é preciso lembrar que a última coisa de que os EUA necessitam é um presidente forte. Com freqüência, presidentes fortes produzem grandes danos ao país."
Edward Prescott, Prêmio Nobel de 2004
"No Brasil, aposto que para abrir uma empresa é preciso ter uma autorização, licença ou documento de Brasília. Nos EUA, Washington não fica nem sabendo da abertura de uma companhia. Por isso, as empresas americanas não devem satisfações ao governo. Só aos seus acionistas. A eleição não vai mudar isso. E os americanos são avessos a controles porque seus negócios são livres, sem governo. Acho que a tentativa de impor uma supervisão global no setor financeiro será um fracasso."
Bruce Scott, professor de Harvard
"É possível que a eleição de Barack Obama tenha algum efeito positivo sobre a atual crise financeira. Afinal, a falta de confiança que vivemos hoje é resultado da incerteza sobre o futuro. Quando se souber quem será o novo presidente, e ele sendo Barack Obama, que é um político capaz de entender de economia, acredito que a eleição vai produzir um impacto desanuviador nesse ambiente de dúvida e insegurança."
Eric Maskin, Prêmio Nobel de 2007
"Não coloco muito peso no efeito psicológico de uma eleição presidencial. A economia não vai mal porque as pessoas estão deprimidas e, se ficassem otimistas, as coisas melhorariam. Estamos enfrentando dois problemas objetivos: um sistema bancário quebrado e excesso de investimento em alguns setores, como a construção civil. Nenhum otimismo em relação à eleição vai reorganizar o sistema bancário ou criar demanda para todas as casas que foram construídas."
José Alexandre Scheinkman,
professor de Princeton

Fotos Stanford University, Matteo Bazzi/EPA/Corbis/Latinstock,
Tim Shaffer/Reuters e Gilberto Tadday