sábado, novembro 01, 2008

Os medicamentos condenados

Remédios: sustos
difíceis de engolir

A quantidade de medicamentos retirados do mercado por causa
de efeitos colaterais graves alarma os consumidores e lança a
pergunta: até que ponto se pode confiar nos laboratórios?


Anna Paula Buchalla e Adriana Dias Lopes


IStock


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VEJA Saúde

É um susto atrás do outro para quem toma remédios – ou seja, quase todo mundo. Do dia para a noite, o comprimido que o médico lhe receitou, e que funcionava às mil maravilhas, é banido das farmácias porque se descobriu que pode causar danos à saúde não previstos na bula (ou, pelo menos, não previstos com a ênfase necessária). O que fazer? Não, não adianta interpelar o médico: ele também não sabia. O único jeito é passar a usar outro remédio – em geral, mais antigo e menos eficiente – e esconjurar mentalmente o medo de engrossar a estatística das vítimas dos efeitos colaterais graves e até irreversíveis da medicação. E eles não são poucos. Vão de distúrbios cardiovasculares e cirrose hepática letal a depressão e suicídio. O primeiro grande susto veio com a saída do mercado do Vioxx, em 2004, quando um estudo o associou a um aumento nos riscos de infarto e derrame. O antiinflamatório era consumido por mais de 85 milhões de pessoas em mais de oitenta países. Nos últimos meses, saíram de cena mais dois antiinflamatórios: o Prexige e o Arcoxia (de 120 miligramas) foram associados a crises hepáticas. O tão aguardado comprimido antibarriga Acomplia também foi recentemente retirado das farmácias, apenas dois anos após o seu lançamento, por aumentar o risco de depressão entre seus usuários. Diante disso, até onde se pode confiar nos medicamentos que continuam em circulação?

Sim, há algo de nebuloso no universo dos remédios. Os problemas têm origem na criação e no aperfeiçoamento de uma nova molécula, estende-se ao marketing agressivo e nem sempre honesto dos laboratórios farmacêuticos e culmina no mau uso do medicamento tanto por parte de muitos pacientes quanto por parte de médicos. Se existe uma boa notícia em terreno tão minado, é a de que, se remédios estão saindo do mercado, é porque a vigilância feita por instituições científicas independentes tornou-se mais eficiente. "Não há dúvida de que o monitoramento se intensificou bastante nos últimos dez anos", diz o médico João Massud Filho, especialista em pesquisa de novos medicamentos, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).


Brownie Harris/Corbis/Latin Stock
O PREÇO DA SAÚDE
Os laboratórios americanos investem mais de 50 bilhões de dólares por ano em pesquisas. Até chegar às farmácias, um único remédio terá custado 1 bilhão de dólares

A produção de um remédio é um processo longo e caro. Só a indústria americana investe mais de 50 bilhões de dólares por ano em desenvolvimento de medicamentos. Ao chegar às farmácias, um remédio terá custado algo em torno de 1 bilhão de dólares e consumido em média dez anos de investimento. Isso significa que o fabricante tem apenas outros dez anos para vendê-lo com exclusividade, até que vença a patente (ela começa a contar a partir do registro da molécula que dá origem ao medicamento). Depois, o caminho está aberto para a produção de genéricos e os lucros proporcionados pelo remédio caem drasticamente. É, portanto, natural que os fabricantes tenham pressa em lançar um medicamento. O problema é quando a correria implica a piora dos padrões de controle. Nos últimos anos, as companhias farmacêuticas passaram a pressionar a FDA, a agência americana de controle de medicamentos, para aprovar rapidamente seus produtos – e, a partir dos Estados Unidos, ganhar o mundo. Algumas apelam para o fast track, mecanismo pelo qual um remédio considerado vital pode receber aprovação em menos de seis meses, para colocar à venda fármacos que não parecem assim tão essenciais. "A verdade dolorosa é que muitos medicamentos estão chegando ao mercado depois de testes clínicos inadequados", disse a VEJA a médica americana Marcia Angell, ex-editora da revista científica The New England Journal of Medicine. Um dos melhores exemplos dos perigos envolvidos na aprovação a toque de caixa de um remédio é o que ocorreu com o Rezulin, indicado para o tratamento do diabetes tipo 2. Ele recebeu a chancela da FDA em 1997, apesar das objeções de vários consultores da agência, que apontaram o seu perigo para o fígado. Lançado em meio a uma campanha publicitária agressiva, o Rezulin foi consumido por 700 000 americanos. Depois de três anos, noventa casos de cirrose, dez transplantes de fígado e 63 mortes, essa bomba finalmente foi proibida.

Os laboratórios gastam outro bilhão de dólares em propaganda nos dois primeiros anos de existência de um remédio – o que comporta, não raro, marketing abusivo. Um dos casos mais famosos de descontrole promocional foi o do Neurontin, um remédio para epilepsia criado pela empresa Warner-Lambert, depois adquirida pela Pfizer. De acordo com a americana Melody Petersen, autora do livro Our Daily Meds (algo como Os Remédios Nossos de Cada Dia), médicos foram agraciados com jantares e presentes, quando não dinheiro, para "vender" o remédio a pacientes e a outros médicos como uma droga milagrosa. Em 2004, a Warner-Lambert foi obrigada a pagar 430 milhões de dólares por ter violado as normas acordadas com a FDA e propagandeado o Neurontin como panacéia para distúrbios para os quais não havia sido aprovado, entre eles enxaqueca e dor nas costas. Apesar de os laboratórios serem proibidos de promover e vender seus remédios para fins diferentes dos que justificaram sua aprovação, um estudo publicado na revista científica on-line PLoS mostra que a indústria tem o hábito de incentivar o uso de seus medicamentos em casos não previstos na bula. Aos médicos é permitido adotar esse tipo de prática quando não há, por exemplo, alternativas terapêuticas aprovadas para a doença. Calcula-se que 60% dos oncologistas utilizem remédios para fins não aprovados. "Nessa situação, porém, a responsabilidade por qualquer evento adverso é apenas do profissional", diz Dirceu Barbano, diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Autora do livro A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos, Marcia Angell acusa a FDA de viver um momento crítico, pelo fato de ter sido estabelecida uma relação de dependência entre a agência e a indústria que ela deveria controlar. A médica diz que, além de terem parte de seu trabalho científico bancada pelas companhias farmacêuticas, vários conselheiros da FDA estão na lista de pagamento dos laboratórios, na qualidade de consultores. Em um artigo publicado em 2005, a revista científica Nature demonstrou que mais da metade das diretrizes elaboradas pela FDA sobre o uso de um medicamento era assinada por um pesquisador ligado à empresa responsável pelo fármaco em análise. Como a FDA ainda é considerada a agência mais rigorosa do mundo, resta a pergunta: até que ponto se pode confiar nos testes clínicos para determinar a eficácia e a segurança de um remédio? Nove de cada dez dessas pesquisas são financiadas pela indústria. Num cenário ideal, os estudos deveriam ser pagos com dinheiro proveniente de entidades públicas. Esses testes, contudo, exigem investimentos tão pesados que só são viáveis à iniciativa privada. "Os problemas existem, mas não se pode demonizar a indústria", diz João Massud Filho, da Unifesp. "Obviamente, há a pesquisa malfeita, mas é impossível prever tudo o que vai acontecer com um medicamento depois que ele chega ao mercado."

Nos últimos quarenta anos, a FDA e a Emea, a agência européia de controle de medicamentos, já retiraram 130 remédios do mercado. "É absolutamente normal que alguns problemas surjam somente após o lançamento", diz Gustavo Kesselring, diretor de pesquisa clínica do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo. Embora os estudos clínicos com um medicamento tentem rastrear a totalidade dos seus efeitos adversos, estima-se que 5% deles surjam posteriormente à comercialização. É, antes de mais nada, uma questão de escala. Durante a fase de testes, 10.000 voluntários experimentam a medicação. Depois de sua entrada no mercado, o número de usuários passa a ser de milhões. Nesse grau de exposição, é esperado que outros efeitos se manifestem. O segundo aspecto, não menos importante, é que as pessoas que se prestam ao papel de cobaias têm perfil bem delineado. "Os voluntários são cuidadosamente selecionados, a fim de que se obtenha o máximo de segurança e, em conseqüência, aumentem as chances de aprovação do medicamento pela agência reguladora", diz o cardiologista Raul Dias dos Santos, do Instituto do Coração, em São Paulo. Quando o remédio é lançado, o cenário é completamente diferente. O medicamento passa a ser consumido por pessoas com diferentes hábitos de vida, com outras doenças associadas e que fazem uso das mais diversas medicações. Aliás, as interações medicamentosas têm revelado aos médicos uma série de reações adversas inimagináveis. Muitos dos novos remédios se tornam ineficazes ou perigosos quando combinados com outros.

Jodi Hilton/Corbis/LatinStock
TOMA LÁ, DÁ CÁ
A médica americana Marcia Angell denunciou a relação incestuosa entre a FDA e a indústria


Foi a partir da década de 60 que as agências reguladoras de saúde começaram realmente a se preocupar com os efeitos de um medicamento depois de seu lançamento. Até então, na maioria das vezes, já era considerado suficiente o fato de o remédio ter sido aprovado em testes clínicos. Há quarenta anos, no entanto, o escândalo decorrente da utilização da talidomida fez soar o alarme. Aprovado para o controle de náuseas, o medicamento foi consumido por milhares de gestantes ao redor do mundo – e gerou 10 000 crianças com atrofiamento ósseo de braços e pernas. Antes de ser lançada, a talidomida só havia sido testada em ratos de laboratório. A tragédia levou as agências a impor métodos de controle mais rigorosos, inclusive depois da chegada do remédio ao mercado.

Por fim, o comportamento do paciente é decisivo para a segurança e eficácia de um medicamento. O último levantamento do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas constatou que os remédios são a principal causa de intoxicação entre os brasileiros – e os benzodiazepínicos, antigripais, antidepressivos e antiinflamatórios são os que lideram a lista. Uma das principais causas é a velha e má automedicação. "O mau uso de um remédio pode matar um remédio bom", diz o toxicologista Sergio Graff, da Unifesp. Muitos dos efeitos perniciosos do Acomplia e do Prexige se devem a esse hábito arraigado entre nós de ingerir comprimidos como se fossem jujubas. O primeiro, indicado para casos de obesidade, passou a ser consumido por quem queria enxugar não mais do que 2 quilinhos. O Prexige, assim como outros antiinflamatórios da mesma classe dos inibidores da COX-2, tem indicação para o tratamento de dores agudas. Mas era usado cronicamente para aliviar dores corriqueiras.

Diante dos distúrbios causados pelo Acomplia, a agência européia recomendou que ele fosse retirado das farmácias. Produzido pelo laboratório francês Sanofi-Aventis, o remédio estreou há dois anos com a indicação inédita de agir sobre a gordura visceral – o tecido adiposo que se concentra na região abdominal e predispõe as pessoas a doenças cardiovasculares. Quando passou a ser utilizado em larga escala, o número de casos de depressão surpreendeu as autoridades sanitárias da União Européia. Foram registrados, em seus países, 36 000 episódios de sintomas depressivos – o equivalente a 5% de todos os pacientes do mundo que usaram o medicamento. O fabricante agora avalia a possibilidade de relançar o medicamento com a indicação apenas para pacientes diabéticos e cardíacos. Os benefícios proporcionados pela perda de gordura visceral justificariam os riscos impostos pelo remédio. Isso, no entanto, não garante que o Acomplia não volte a ser ingerido por pessoas saudáveis, que querem apenas se livrar dos pneuzinhos. Assim que saiu a notícia de que o comprimido antibarriga também seria banido das farmácias brasileiras, muita gente correu para o consultório do endocrinologista em busca da última receita do remédio. Infelizmente, não se vende juízo em comprimidos.

Nova estratégia de ataque

Pesquisadores italianos descobrem
uma forma inédita de combate ao HIV

Mehau Kulyk/SPL/Latinstock
INIMIGO RESISTENTE
O vírus da aids é altamente mutável, o que dificulta muito o tratamento da doença

Na semana passada, pesquisadores italianos anunciaram uma nova frente de ataque ao HIV, o vírus da aids. Biólogos dos laboratórios de química farmacêutica da Universidade de Siena e de virologia molecular de Pavia conseguiram desenvolver uma molécula que atua nas células de defesa do organismo humano, os linfócitos CD4 – e não no vírus, como fazem os medicamentos disponíveis atualmente. Ainda sem nome, a nova substância bloqueia a proteína DDX3, produzida apenas pelos linfócitos infectados. Ao se instalar numa célula CD4, o HIV altera o código genético desse linfócito, estimulando-o a fabricar DDX3. Esse é um dos mecanismos usados pelo vírus para garantir sua replicação – e, conseqüentemente, sua sobrevivência. Os estudos com a molécula anti-DDX3 ainda estão em fases muito iniciais. Ela não foi sequer testada em animais, mas, mesmo assim, animou os médicos especializados no tratamento dos portadores do HIV. "Ainda que esteja em estágios embrionários de pesquisa, a descoberta dos cientistas italianos é a mais promissora dos últimos cinco anos na área de desenvolvimento de remédios contra a aids", diz Artur Timerman, infectologista do Hospital Albert Einstein e chefe do serviço de controle de infecções do Hospital Professor Edmundo Vasconcelos. O trabalho sobre a nova molécula foi publicado na revista científica Journal of Medicinal Chemistry, da Sociedade Americana de Química.

A última grande novidade no tratamento da aids foi um medicamento desenvolvido em 2003. Aprovado pela FDA e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária há um ano, o maraviroc age no vírus antes da contaminação dos linfócitos CD4. Ele impede que o HIV se ligue à proteína CCR5, responsável por facilitar a entrada do vírus nas células de defesa do organismo. Além dele, há outros trinta anti-retrovirais disponíveis hoje em dia. Todos têm também o HIV como alvo e a maioria entra em ação depois da infecção dos linfócitos. O problema é que esse vírus se caracteriza pela alta capacidade de mutação, o que dificulta o seu combate. Nesse sentido, a estratégia italiana de ataque ao HIV parece bastante promissora. Como a nova molécula investe contra uma proteína produzida por células humanas (e não contra o vírus), a probabilidade de o HIV transmutar-se em inimigo mais resistente é bem menor.

Coração artificial com tecido biológico

Prótese cardíaca criada por cirurgião francês pode
pôr fim ao problema de rejeição nos casos de implante

Patrick Kovarik/AFP
O CRIADOR E SUA INVENÇÃO
O cirurgião Alain Carpentier trabalhou durante quinze anos para chegar ao protótipo de uma peça que ofereça menos risco (no alto)


Há pelo menos uma dezena de corações artificiais disponíveis hoje no mercado. Os mais avançados são capazes de assumir as principais funções de um coração de verdade. Nenhum deles, no entanto, está livre de ser rejeitado pelo organismo. Um passo para a solução desse problema foi dado pelo cirurgião cardíaco francês Alain Carpentier, do Hospital Georges Pompidou, em Paris. Ele construiu um coração artificial revestido por um tecido biológico anti-rejeição. O invólucro é feito a partir da membrana cardíaca de animais, em especial porcos. O coração artificial francês foi testado em carneiros, e os estudos em seres humanos devem começar em dois anos. O material metálico e plástico das próteses disponíveis no mercado fica em contato direto com o organismo. Para evitar a rejeição, o paciente tem de tomar antiinflamatórios e anticoagulantes diariamente. Do ponto de vista tecnológico, a prótese francesa não apresenta diferenças significativas em relação às concorrentes. Mas o invólucro criado por Carpentier é um detalhe que faz toda a diferença. "Não há dúvida de que, se tudo der certo com a invenção, poderemos garantir não só uma maior sobrevida, como uma melhor qualidade de vida aos pacientes que receberem o implante", diz Jarbas Dinkhuysen, cirurgião cardíaco do Hospital do Coração e responsável pelo sistema de captação de órgãos do Instituto Dante Pazzanese, em São Paulo.