sexta-feira, dezembro 21, 2007

Bolívia O significado da revolta dos governadores

A Bolívia que diz não

O departamento mais rico e moderno do país
luta por autonomia regional e para frustrar
os planos populistas de Evo Morales


Duda Teixeira, de Santa Cruz de la Sierra


Carlos Hugo Vaca/Reuters
Manifestação em Santa Cruz, a mais próspera região da Bolívia: pela autonomia regional e contra a Constituição de Morales

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A Bolívia sobreviverá ao efeito deletério de Evo Morales? O país agoniza entre duas constituições. A primeira, a nacional, proposta por Morales, foi aprovada às pressas numa reunião sem a presença dos deputados da oposição, em plenário improvisado numa universidade de Oruro, terra natal do presidente. A segunda Constituição, regional, foi publicada nos jornais do departamento de Santa Cruz, circula pela internet, pode ser obtida em qualquer repartição pública e será submetida a referendo popular. Propõe conceder ao departamento autonomia similar à existente nos estados da federação brasileira. O presidente, que aprovou às escondidas sua própria Carta, já ameaçou enviar o Exército para esmagar a escrita por seus opositores. Santa Cruz lidera um movimento de governadores que se opõe a Morales, considera sua Constituição ilegítima e não deixa dúvidas sobre o divórcio existente hoje entre o governo de La Paz e a parte mais rica e próspera do país.

O impasse criado pelas constituições regionais e pela nacional é o retrato do fosso político que se instalou no país. O bastião de Evo Morales é a população mais pobre da Cordilheira dos Andes, com forte presença indígena, mais fácil de encantar com sua cantilena populista. A outra parcela de bolivianos, mais numerosa e próspera, mora nas planícies que se estendem até a Amazônia. As repetidas ameaças feitas por Morales de confisco de terras e indústrias só azedam ainda mais o relacionamento. Na semana passada, começaram a ser recolhidas as assinaturas necessárias para convocar um referendo a fim de aprovar o texto da Constituição que declara a autonomia de Santa Cruz. O mesmo processo deve se repetir nos departamentos de Beni, Pando, Cochabamba e Chuquisaca. Em Tarija, o governador dispensará essa formalidade. Como a Constituição de Evo também terá de ir a referendo, o próximo ano será agitado do ponto de vista eleitoral.

Javier Mamani/AFP
Evo Morales: o presidente fez aprovar às escondidas sua Constituição

Nas últimas cinco décadas, os cruzenhos criaram uma Bolívia diferente, que procura fugir da miséria com o seu esforço. A rede de luz e de água de Santa Cruz de la Sierra foi construída pelos próprios cidadãos, já que o governo central estava ausente. O empreendedorismo e o sucesso pessoal são valorizados. No jornal local, a coluna social ocupa doze páginas. A região prosperou com a agricultura de soja e a pecuária extensiva, com muitas fazendas administradas por brasileiros. "Ao contrário da mineração, atividade que não estimula a diversificação econômica, a agricultura criou uma classe média empreendedora em Santa Cruz", diz Gabriel Dabdoub, presidente da Câmara de Indústria e Comércio local. Em nome do governo de Santa Cruz, ele pediu uma audiência com Lula aproveitando a visita do brasileiro à Bolívia, na semana passada. Foi ignorado. "É uma pena o governo brasileiro preferir apoiar as políticas de Morales, que quer destruir nosso modelo social e econômico bem-sucedido."

Evo Morales procura vender a idéia de que tenta salvar o país do separatismo. Não é isso que está em jogo. A autonomia desejada por seis dos nove departamentos do país é modesta se comparada à desfrutada pelos estados da federação brasileira. Os departamentos querem autonomia para criar a sua fonte de arrecadação, com impostos locais, um poder legislativo e uma força policial próprios. "Propomos um sistema flexível, em que as competências de um departamento podem ser maiores ou menores de acordo com sua capacidade", diz o deputado Oscar Antonio Franco, de Santa Cruz. Essa flexibilidade incomoda o governo de Evo Morales. Ele se preocupa especialmente com a possibilidade de os departamentos criarem suas próprias empresas petrolíferas. Esse é um dos muitos itens contidos na declaração de autonomia de Santa Cruz que entram em franca contradição com a Constituição de Morales. Uma companhia cruzenha de gás poderia competir com a estatal nacional YPFB e fazer parcerias com empresas estrangeiras, algo inadmissível para o governo populista de Morales.

Nesse contexto, não espanta que, enquanto os habitantes de Santa Cruz comemoravam nas ruas sua autonomia, na semana passada, Evo tenha ameaçado usar as Forças Armadas contra o movimento. "Usar o Exército contra os departamentos que representam três quartos do território nacional seria um suicídio político, e Evo sabe disso", diz Alcides Parejas, historiador da Universidade Privada de Santa Cruz de la Sierra. Se a perspectiva de uma guerra civil é improvável, os embates violentos e espontâneos nas ruas de cidades como La Paz, os bloqueios de estradas e as greves devem se tornar mais intensos em 2008. A boa notícia é que Evo Morales, apesar de seu esforço em mimetizar as políticas desastrosas de Hugo Chávez, na Venezuela, é menos truculento que seu mentor. Na semana passada, após algumas pesquisas de opinião darem como certa a vitória da autonomia em referendos regionais, o presidente boliviano anunciou sua disposição de negociar com os governadores. É uma boa notícia. Se Morales parar de imitar Chávez, a Bolívia sobreviverá melhor a seu desastroso governo.