Gaudêncio Torquato
Em seus escritos, Maquiavel relata a história de um rico romano que deu comida aos pobres durante uma epidemia de fome e, por isso, foi executado pelos concidadãos, sob o argumento de que pretendia fazer seguidores para se tornar um tirano. Há poucos dias, no Japão, o ministro da Agricultura suicidou-se, envergonhado por ter sido acusado de favorecer empreiteiras e receber propina. Um dia depois, o executivo de uma corporação subordinada ao Ministério imitou o gesto, suicidando-se ao se atirar da sacada de seu apartamento em Tóquio. O poderoso e respeitado Paul Wolfowitz é obrigado a deixar a presidência do Banco Mundial por promover e aumentar o salário da namorada, funcionária da instituição. Como se vê, os antigos romanos valorizavam ao extremo a boa conduta dos políticos. No Japão e nos EUA, a moralidade pública é um dever inalienável. Os exemplos mostram que a postura ética ocupa lugar de destaque na sala de estar do homem público desde tempos imemoriais, corroendo o perfil dos atores da cena política.
A relação entre moral e política é útil para nela inserirmos os últimos acontecimentos, que apontam tênue limite entre a privacidade e o desempenho dos nossos representantes. O caso mais revelador é o que atinge o senador Renan Calheiros, sobre quem recaem suspeitas de relações espúrias com empreiteiras. A questão adquire grande visibilidade por se tratar do presidente do Senado e do Congresso Nacional, o terceiro cargo na linha sucessória da Presidência da República. Tal condição fortalece o bastião de defesa do senador. O fato denota, ainda, a banalização de escândalos envolvendo altas personalidades. Comecemos pela pergunta que cala fundo: mesmo que não receba sanção e seja inocentado das insinuações, Renan terá condições de manter o mesmo vetor de força na Câmara Alta? A resposta é não. Pois terá menor independência perante seus pares. Poderá até não se transformar em ectoplasma, mas lhe faltará autoridade. O Senado também fica com a imagem abalada. Ponto para o presidencialismo imperial.
Chamou atenção o discurso abordando o “calvário”, termo que Calheiros usou para o affaire amoroso com a jornalista com quem teve uma “paternidade não programada”. O relato entra no figurino do que os franceses chamam faits divers, curiosidade que acabou atenuando o impacto do vendaval Gautama sobre a imagem do senador. Ora, quase todos os dias se estampam denúncias sobre assaltos aos cofres da República. Faz tempo que a bandeira moral é enxovalhada nas fontes da podridão. Mas são raros os “causos” sobre relações extraconjugais e estampas de mulheres relacionadas com políticos. O adorno romanceado da crise faz festa no imaginário nacional. Nos EUA e na Inglaterra, a vida amorosa de políticos é nitroglicerina pura para a mídia. Já em países como a França, a intimidade é preservada, como foi a do falecido François Mitterrand e, mais recentemente, a de Nicolas Sarkozy, ambos com tumultuada vida familiar. Entre nós, a agenda extra-oficial de mandatários sempre pautou a História, desde Pedro I, que se apaixonou por Domitila de Castro Canto e Mello, a quem deu o título de marquesa de Santos. A crescente interferência da marquesa nos negócios do governo acabou corroendo a simpatia popular pelo imperador. Alguns presidentes foram grandes namoradores, mas a vida amorosa não lhes diminuiu a fama, como registram a história de Getúlio e a de Juscelino.
Voltemos ao evento recente. Restrito à intimidade, o caso Renan cairia, logo, no baú do esquecimento. Só assumiu conotação perigosa ante a insinuação de que uma construtora teria arcado com a pensão alimentícia da filha que teve fora do casamento. Nesse ponto, o segundo “pecado” se encontra com a primeira suspeição (Gautama), induzindo à suspeita de favorecimento a empresas, o que - caso se confirme - poderia levar o senador a enfrentar a acusação de quebra de decoro. Tudo indica que não será crucificado, mas o episódio abre o sinal vermelho na estrada da relação entre empreiteiras e obras públicas. Renan cometeu equívocos. O primeiro foi usar a cadeira da presidência do Senado para se defender. A tribuna seria o lugar adequado. Dali falaria de igual para igual, dispensando a liturgia presidencial. Ao resgatar o tribuno Cícero, que defendeu o Senado de impropérios a ele dirigidos pela turba, cometeu outro equívoco. Havia, sim, entre os senadores romanos “adúlteros, assassinos, sedutores, libertinos e ladrões”, para ficarmos nos termos que inseriu no discurso.
Ademais, não há intenção deliberada de “restaurar esses tempos” no Brasil. Trata-se de dar visibilidade a fatos que contribuem para conspurcar a imagem de mandatários comprometidos com ética e moral. A Constituição diz que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Mas o homem público precisa compartilhar as vidas pública e privada com os eleitores. No Brasil há uma razão a mais: aqui o voto é atribuído à pessoa. Outra questão: é imoral uma empresa bancar despesas de um político fora dos pleitos eleitorais. Parlamentares têm o direito de pressionar por verbas para suas regiões. Mas abrem a porta da ilicitude quando usam a chave da propina.
A atual tormenta não melhorará os padrões políticos. A permissividade, a contemporização, o corporativismo, a protelação de reformas e a sensação de mesmice continuarão a permear as nossas crises. E não se espere suicídio no Brasil em função da vergonha pública. Se assim fosse, o cemitério estaria entupido de homens públicos.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político. E-mail: gautor@gtmarketing.com.br