sábado, junho 16, 2007

Ética O caso Renan consagra a permissividade no Parlamento

A ética que vem do pasto

Conselho se esforça para poupar o presidente do
Senado, enrolado com lobista, bois e recibos falsos


Otávio Cabral

Wilson Dias/ABR
Renan Calheiros: articulação com aliados para evitar processo de cassação


O Conselho de Ética do Senado deu na semana passada uma valiosa contribuição para consolidar a péssima reputação da classe política brasileira. Sem se preocupar em ao menos fazer de conta que pretendia investigar alguma coisa, o senador Epitácio Cafeteira, do PTB do Maranhão, concluiu que o presidente do Congresso, Renan Calheiros, não praticou atos que ferissem o decoro parlamentar ao utilizar os serviços de um lobista da empreiteira Mendes Júnior para pagar as despesas de uma filha durante quase dois anos. Cafeteira também não viu nada de mais no fato de esses serviços incluírem o empréstimo de um apartamento para encontros particulares e o uso do escritório da empreiteira como se fosse uma tesouraria de Renan Calheiros. O senador Epitácio também não detectou conflito algum no fato de o presidente do Congresso manter relações de amizade com um empreiteiro do calibre de Zuleido Veras, acusado de corrupção, formação de quadrilha e fraude em licitações. Se aprovada, a decisão de Cafeteira, além de constranger os políticos sérios, cria um novo e vergonhoso patamar ético no Parlamento. Qualquer senador pode sentir-se autorizado a receber um empreiteiro em sua casa, pedir-lhe um favor financeiro e, depois, compensá-lo com a apresentação de uma emenda ao Orçamento. Estará simplesmente seguindo a jurisprudência criada pelo senador Cafeteira.

Fotos Cristiano Mariz
As fazendas do senador em Alagoas: lucros excepcionais com a venda de gado para um lugar isolado pela febre aftosa

"A decisão de arquivar o caso ocorreu antes de a investigação começar. É um precedente perigoso, um convite à quebra de decoro", protestou o senador Demostenes Torres, do DEM de Goiás, um dos parlamentares que se insurgiram contra o relatório de Cafeteira. O que se viu no Conselho de Ética foi a montagem de uma farsa para absolver Renan Calheiros sem nenhuma investigação, e ela só não se concretizou ainda porque o custo político poderia ser impagável mesmo para o padrão daqueles senhores. Uma reportagem do Jornal Nacional, da Rede Globo, fez o que a comissão não se interessou em fazer. Os jornalistas tiveram acesso aos recibos que o senador Calheiros apresentou para justificar a origem dos recursos que, segundo ele, foram usados para pagar a pensão da filha. Renan não conseguiu provar que o dinheiro entregue pelo lobista Cláudio Gontijo à jornalista Mônica Veloso, mãe de sua filha, saiu de suas contas pessoais e tenta convencer que tinha condições financeiras de fazer os pagamentos. Para comprovar pelo menos essa parte de sua versão, o senador apresentou 64 recibos atestando a venda de 1 700 cabeças de gado, que lhe rendeu cerca de 1,9 milhão de reais. Os documentos se assemelham a uma versão rural da famosa Operação Uruguai – a fracassada armação feita pelo ex-presidente Fernando Collor antes de seu impeachment.

Celso Junior/AE
Reunião do Conselho de Ética: encenação para livrar o senador Renan Calheiros de uma investigação rigorosa

Desde o início da semana, a operação Alagoas do presidente do Congresso já chamava atenção pelos valores envolvidos nas transações. Renan Calheiros declarou ganhos de 1,9 milhão de reais com a venda de gado nos últimos quatro anos, transformando o senador em um fenômeno da pecuária moderna. O estado de Alagoas está classificado como área de risco da febre aftosa e não pode vender 1 quilo de carne para além de suas fronteiras. Isso, é claro, fez o preço do boi cair e a produção minguar na região, exceto para o rebanho de Renan Calheiros, que conseguiu fazer negócios a valores bem acima dos de mercado. De acordo com as declarações de renda do senador, a maior parte de sua criação foi vendida a empresas de Maceió e até a uma da Paraíba, contrariando as determinações de segurança sanitária. A reportagem procurou os compradores dos bois de Renan Calheiros e descobriu surpreendentes indícios de fraude. A empresa Carnal, segundo documentos assinados pelo senador, comprou 127.000 reais em gado de sua fazenda. Em entrevista, o proprietário da empresa, João Teixeira dos Santos, diz que nunca fez nenhum negócio com o senador e que a empresa está desativada há tempos. Outra compradora do gado de Renan Calheiros, de acordo com os recibos assinados, é a empresa GF da Silva Costa. No endereço onde ela deveria funcionar mora uma família que nunca ouviu falar nem da empresa nem de seu dono.

Fotos reprodução
O outro lado da venda de gado: o gerente da fazenda de Calheiros disse ao Jornal Nacional que o rebanho é menor do que o anunciado e os "compradores" garantem nunca ter feito negócio com o senador

Os recibos parecem ter sido produzidos em série, num arquivo de computador. São assinados pelo senador Renan Calheiros e foram entregues ao Conselho de Ética acompanhados, em sua maioria, dos respectivos comprovantes de depósitos bancários. Entre as empresas compradoras do gado do senador, duas já foram multadas pela Secretaria da Fazenda de Alagoas por extravio de notas fiscais. Renan Calheiros disse que tem como comprovar que as transações efetivamente aconteceram e prometeu apresentar mais documentos. "Estão querendo sujar o nosso nome", protestou José Marcolino Neto, dono do supermercado Manaíra, em João Pessoa, que teria comprado 45 cabeças de gado do senador. "Desconheço esse negócio e esse recibo." Segundo Renan Calheiros, se houve algum problema nas vendas, a responsabilidade é do veterinário Gualter Peixoto, que cuida de suas fazendas em Alagoas. Peixoto não é um veterinário qualquer. Ele também é o chefe do setor do Vigilância Sanitária da prefeitura de Murici e tem como patrão Renan Calheiros Filho, o prefeito, filho do senador. O veterinário-marchand desapareceu na semana passada. Em Murici, funcionários da prefeitura informaram que ele dá expediente apenas na terça-feira, do meio-dia às 6 da tarde. As informações agropecuárias de Renan Calheiros foram desmentidas pelo próprio gerente de sua fazenda, Everaldo de Lima Silva. Segundo ele, pastam nas fazendas de Renan 1 100 bois, 600 a menos do que informou o senador.

Alexandre Schneider
A VEJA, Mônica Veloso confirmou que os pagamentos eram feitos pelo lobista em dinheiro

Na sexta-feira, o Conselho de Ética do Senado, que estava preparado para arquivar o caso, decidiu solicitar uma perícia nos documentos apresentados por Renan Calheiros. Foi o penúltimo ato de uma encenação que estava marcada para terminar naquele dia e que só não acabou por causa das novas suspeitas de fraude. Foi tudo tão escandalosamente armado que, nas últimas duas semanas, coube ao senador Renan Calheiros – ele mesmo, o investigado – a tarefa de avalizar a indicação dos membros do Conselho de Ética, discutir com aliados o nome do relator e usar sua influência para controlar o processo desde o início. Ninguém parecia constrangido em testemunhar Renan usando o cargo de presidente do Congresso para promover as articulações de sua própria absolvição. Na tarde de 30 de maio, por exemplo, cinco dias depois de publicada a primeira denúncia de que o lobista da Mendes Júnior pagava suas despesas pessoais, Renan se reuniu com o líder do governo, Romero Jucá, do PMDB, e com a líder do PT, Ideli Salvatti, para definir o nome do presidente do recém-indicado Conselho de Ética. Os dois partidos são donos das maiores bancadas e, por isso, têm a prerrogativa de indicar o presidente e o relator da comissão. Jucá – um raro exemplo de ética, principalmente quando o assunto é fazenda – sugeriu o nome do petista Sibá Machado para a presidência. Renan, de início, não gostou. Na cabeça do senador, por trás das denúncias havia uma conspiração de petistas querendo sua derrocada, e Sibá não estava na lista de seus convivas. Ideli Salvatti garantiu que Sibá faria tudo o que a cúpula do PT determinasse. Renan concordou.

Joedson Alves/AE
Jader Barbalho: o conselheiro que foi obrigado a renunciar

Definido o nome do presidente, passou-se à etapa seguinte, a escolha do relator, missão para a qual os governistas já tinham o nome do senador Epitácio Cafeteira como principal candidato. Ele possuía o perfil apropriado para assumir o papel de impostor. Renan, de novo, estava à frente do processo de escolha. Ele só deu sinal verde à indicação de Cafeteira depois de ouvir do aliado José Sarney que o colega maranhense era confiável e faria tudo o que fosse necessário para absolvê-lo rapidamente, mesmo que para isso, como se viu, precisasse apresentar um suspeitíssimo relatório, sem ouvir testemunhas, sem periciar documento, formando seu juízo sobre o caso sentado numa privada. Nem a divulgação dos recibos suspeitos impediu o senador de continuar a vergonhosa articulação. Renan passou a madrugada de quinta para sexta-feira ao telefone. Um de seus principais interlocutores foi o deputado Jader Barbalho, que renunciou em 2001 para não ter o mandato cassado. A notícia atrapalhou os planos de encerrar o caso na sexta-feira. Pegaria mal. Combinou-se então um novo ato, acertado no gabinete do senador Marconi Perillo, do PSDB. O Conselho, com o aval da oposição, aceitaria prorrogar em dois dias o início da votação do relatório de Cafeteira para que os recibos fossem periciados e também tomados os depoimentos do lobista Cláudio Gontijo e do advogado de Mônica Veloso (ela, que é a principal testemunha, não foi convidada). Mas esqueceram-se de combinar a nova versão com o senador Epitácio Cafeteira, que, radical, anunciou que renunciaria se houvesse o adiamento. A renúncia de Cafeteira era tudo que Renan Calheiros não queria. A sorte do senador é que o celular de Cafeteira tocou durante a sessão. Era sua esposa, Maria Isabel, pedindo que ele reconsiderasse. Ele reconsiderou. A votação do relatório com postulados éticos de Cafeteira está marcada para terça-feira.

Roberto Stuckert Filho/Ag. Globo
O lobista Gontijo: dinheiro vivo

Com reportagem de Alexandre Oltramari