A estratégia de passar a prestar serviços básicos à população, depois de dominar as partes de Porto Príncipe que estavam controladas por gangues, foi fundamental para o êxito da força internacional de paz que o Brasil comanda no Haiti. A primeira região a ser controlada foi a de Bel-Air, no centro da cidade, onde está o palácio governamental; em seguida veio o controle de Cité Militaire, e, no início deste ano, a maior favela do país, Cité Soleil, onde vivem cerca de 300 mil pessoas. O senador do PDT Cristovam Buarque, que esteve no Haiti acompanhando o trabalho das tropas brasileiras, confirma que existe um clima de simpatia com o Exército: “Eu vi bandeiras do Brasil pintadas nas paredes. E não só entre o povo. O presidente do Banco Central, Raymond Magloire, me disse que tem raiva das tropas estrangeiras estarem em seu país, mas sente mais raiva quando pensa que elas vão embora um dia, pois precisam delas.” Já Antonio Jorge Ramalho da Rocha, sociólogo da Universidade de Brasília que trabalha no Haiti junto ao Ministério da Defesa, lembra que a solução desse tipo de problema “envolverá, pelo menos no início, alguma violência, pois os bandidos não vão se entregar passivamente”.
A solução para recuperar os espaços hoje dominados pelo crime organizado é simples na teoria, ressalta Antonio Jorge Ramalho: cercar as entradas e cortar o suprimento logístico; entrar nas favelas; combater os bandidos; assistir a população imediatamente em seguida, com escolas, postos de saúde, delegacias de polícia.
Mas ele adverte: “Haverá mortes nessas operações, que só resolverão a dimensão mais superficial e visível do problema. Depois, se não houver a ocupação ‘do bem’, com o cumprimento efetivo do que se espera do Estado, a situação voltará ao que era; novos líderes surgirão nas gangues, para assumir os negócios que florescerão enquanto forem lucrativos. É preciso, então, assistir e criar alternativas, no marco legal, para as gerações de pequenos empreendedores que hoje buscam satisfazer seus sonhos de consumo com o produto de atividades criminosas.” O sociólogo ressalta que a experiência que o Exército brasileiro está tendo no Haiti “é algo que tem sido efetivamente inovador no campo militar, o desenvolvimento de uma nova doutrina de emprego, cuja natureza pode ser útil em outras operações que envolvam a ocupação de bairros marcados pela ausência de autoridades públicas e locais assemelhados.” Ele lembra que, “em parte, a atuação junto às comunidades carentes é uma aplicação da experiência que o Exército brasileiro já adquiriu na ocupação do território nacional, por meio de ações cívicosociais (as chamadas Acisos).
É o que se faz na Amazônia há décadas.” Mas essas ações são, em parte, subsidiárias; em outra parte, integram uma estratégia de ocupação do território, para defendê-lo, comenta o sociólogo da Universidade de Brasília, mas “não são a razão de ser das Forças Armadas e não almejam substituir integralmente as agências, cujas responsabilidades não estão sendo adequadamente cumpridas. Isso vale para saúde, saneamento, educação, cultura.” Uma das dificuldades para a implantação de uma operação semelhante nas favelas do Rio de Janeiro é o montante de recursos necessário. Rubem César Fernandes, do Viva Rio, não cita cifras, mas fala em “dinheiroONU”, para realçar que “teve muito dinheiro”. A tal ponto que os nossos PMs disseram: “assim, até eu fazia”. O deputado Federal Fernando Gabeira, do PV, também destaca esse problema: “O que me parece problemático é que o volume de dinheiro que nós gastamos lá é cinco vezes maior do que nós gastamos por ano no Rio. Você teria em comparação um volume muito maior de áreas de conflito, com recursos muito menores para o desenvolvimento de ações sociais.” Também o general Augusto Heleno, ex-comandante da Missão de Paz, ressalta que não existem problemas de logística para as tropas no Haiti.
Falando sobre a ação do Exército no Brasil, ele compara: “Nós sabemos, por exemplo, que nossa atuação de fronteira deveria ser muito mais eficiente, ela é esporádica. Mas não temos recursos. O orçamento do Exército é insuficiente.” Tão importante quanto a estratégia de permanência nos locais ocupados foi o sistema de ocupação progressiva, lembra Rubem César, que faz um trabalho de recuperação urbanística e social na região de Bel-Air: “A estratégia lá primeiro foi de fazer um caminho, atacando por partes. Depois que domina uma região, fica e move-se para o segundo ponto, que foi Cité Militaire. Isso levou um ano, um ano e meio. Só no terceiro ano foram encarar Cité Soleil. A estratégia é criar pontos fortes, como se fossem bases internas ofensivas.” O planejamento permitiu uma estratégia de redução de danos e riscos que resultou em não haver um único soldado brasileiro morto. Aqui no Rio, comenta Rubem César, “nossa segurança é reativa, é como se os bandidos tivessem sempre a dianteira. Nós ainda não conseguimos montar uma estratégia de ocupação progressiva.” Ele compara a atuação de nosso Exército lá, onde houve um trabalho de três anos para se conseguir dominar a maior favela, com a situação recente no Rio: “Aqui nós estamos há um mês em Vila Cruzeiro, e já está todo mundo de língua de fora, ninguém agüenta mais, nem o bandido nem o mocinho, nem a sociedade.” No Rio, uma ação progressiva poderia ter como prioridade, segundo os especialistas, as favelas da orla da região turística como Chapéu Mangueira, Pavão-Pavãozinho, Cantagalo, Ladeira Tabajara, Cruzada São Sebastião, Vidigal, Rocinha, Parque da Cidade, favelas que já deveriam estar totalmente integradas e virado bairros populares.
(Amanhã: O poder de polícia)
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