O governo brasileiro engoliu mais uma imposição comercial da Argentina, uma restrição à entrada de fogões e geladeiras fabricados no Brasil. Desde o começo de janeiro a importação desses produtos está sujeita a licenças não automáticas, uma barreira destinada a retardar a liberação das mercadorias e, portanto, a dificultar e desestimular as compras. Fabricantes brasileiros têm tido problemas para exportar não só produtos da chamada linha branca, como fogões e geladeiras, mas também calçados, têxteis e eletrônicos - tudo isso sem contar os velhos problemas dos setores automobilístico e do açúcar.
A imposição da licença não automática para bens da linha branca foi uma forma de pressionar os industriais brasileiros a renovar o acordo de restrição “voluntária” de exportações. Como a proposta foi rejeitada, a barreira foi mantida, apesar do apelo apresentado ao governo argentino pelo secretário-executivo do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Ivan Ramalho.
Como as autoridades argentinas mantiveram a decisão, Ramalho pediu a adoção do regime de urgência para os licenciamentos, como forma de reduzir o prazo de 60 dias para uma semana. O pedido foi feito há uma semana, em Buenos Aires, durante reunião da Comissão Bilateral de Comércio.
Segundo nota do Ministério do Desenvolvimento, divulgada em Brasília, o secretário do Comércio da Argentina, Miguel Peirano, prometeu adotar o regime em uma semana, mas essa informação não foi confirmada em Buenos Aires.
De toda forma, o governo brasileiro, ao pedir a redução do prazo de licenciamento, aceitou a restrição burocrática e passou a discutir simplesmente sua forma de aplicação. Rendeu-se mais uma vez, portanto, a uma decisão argentina sobre como deve ser conduzido o comércio entre os dois países.
Na prática, Brasília continua a aceitar o protecionismo argentino, apesar de uma ligeira mudança na retórica. O Brasil, segundo disse Ramalho em Buenos Aires, já deu sua contribuição para o reerguimento econômico do vizinho, ajudando-o a sair da crise iniciada em 1998. “Nossa posição é que já não se justificam acordos como esse (de limitação para o setor da linha branca) feitos no passado, no auge da crise argentina”, argumentou o secretário na reunião do comitê bilateral.
Mas acordos como esses nunca foram justificáveis, de fato, a não ser do ponto de vista das autoridades brasileiras e do governo de Buenos Aires, empenhado em atender aos interesses da indústria argentina. Fabricantes brasileiros foram forçados, desde o começo de 2004, a aceitar esses acordos para impedir a adoção de barreiras mais danosas pelo governo argentino. As autoridades brasileiras não só aceitaram as pressões do vizinho, mas, além disso, induziram os empresários a ceder. Uma das conseqüências foi o desvio de comércio. Com a retração dos exportadores brasileiros, abriu-se espaço para o ingresso de produtos da China e de outros países no mercado argentino.
O governo brasileiro tem cedido em quase tudo, quando pressionado pelo governo de Buenos Aires, com a justificativa de preservar e fortalecer o Mercosul e promover a integração sul-americana. Com o mesmo discurso, as autoridades brasileiras têm-se deixado levar a reboque pelo presidente venezuelano Hugo Chávez e já não esboçam a mínima resistência aos desmandos e pressões do boliviano Evo Morales.
Também no começo da semana passada, em Genebra, a representação brasileira apressou-se a apoiar o governo do presidente Néstor Kirchner, quando a política argentina foi discutida e criticada na Organização Mundial do Comércio. Chile, Estados Unidos, Peru e Colômbia apontaram problemas na relação comercial com a Argentina, enquanto o Brasil preferiu, como explicou um diplomata, deixar a roupa suja para lavar em casa.
Mas a roupa suja é muito volumosa e a casa - o Mercosul - está em péssimas condições e é difícil encontrar uma boa justificativa para mantê-la no estado atual. Talvez o governo brasileiro mantenha alguma ilusão quanto a uma posição de liderança regional. Os fatos desmentem essa ilusão diariamente e a restrição argentina aos produtos brasileiros da linha branca é só mais um exemplo, e certamente não será o último.
Entrevista:O Estado inteligente
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segunda-feira, fevereiro 19, 2007
A roupa suja do Mercosul
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