terça-feira, agosto 22, 2006

A ilha sem Fidel Castro - Rubens Barbosa




A ilha sem Fidel Castro

Rubens Barbosa

Há 46 anos governando Cuba, Fidel Castro, com 80 anos recém-completados, precisou, por problemas de saúde, pela primeira vez, transferir a chefia do governo da ilha a seu irmão Raúl, sucessor designado desde 1985. Como será Cuba sem Fidel? Como se fará a mudança de governo? Como será a transição do atual regime? Ao que parece, já estamos observando o início do período de transição de poder em Havana, com todas as partes interessadas se preparando para enfrentar tempos de incerteza política no país.

Pelo lado do governo, o próprio Fidel, talvez ciente de sua doença há algum tempo, já havia começado a tratar do assunto, como evidenciado pela tranqüilidade com que se deu a sucessão, na qual um grupo de ministros e personalidades políticas estava preparado para assumir o poder de forma colegiada. A oposição interna em Cuba, desde 2003, não sem dificuldades, promove um Diálogo Nacional com um Programa Para Todos os Cubanos. O governo dos EUA, logo depois da eleição de Bush, criou em 2002 a Comissão para Assistência a uma Cuba Livre, retribuindo o maciço apoio dos exilados cubanos anticastristas, sobretudo da Flórida, e liberou recursos da ordem de US$ 59 milhões com o objetivo expresso de tornar seu compromisso pessoal de liberar Cuba um compromisso nacional. Mais recentemente essa comissão propôs a criação de um fundo de US$ 80 milhões para um plano de aceleração do processo de democratização em Cuba, assim como um pacote de ajuda para um futuro governo de transição.

Em qualquer dos cenários possíveis para a era pós-Fidel, o papel do Partido Comunista e do Exército deverá ser crucial. As Forças Armadas são a instituição mais importante em Cuba e Raúl Castro, o ministro da Defesa há mais de 40 anos. O cenário futuro mais provável, como evidenciado agora, seria a sucessão familiar, com Raúl assumindo o comando político do país, num mandato-tampão que poderá ser longo, com a morte, ou curto, pela incapacitação temporária de Fidel.

A maneira como a situação interna em Cuba está evoluindo parece demonstrar um total controle do partido e do Exército. Nesse contexto, com a ascensão de uma nova geração de líderes (Carlos Lage, Ricardo Alarcón, Felipe Pérez Roque, Francisco Soberón), que governará conjuntamente e depois sucederá a Raúl, parece ser possível especular que, ao contrário de todos os cenários discutidos nos EUA, Cuba, a médio prazo, poderá evoluir em paz e tranqüilidade, seguindo o modelo chinês. Perestroika sem glasnost. Reformas na economia visando a atrair capital de risco de Miami para investimentos na ilha, mas firme controle político sobre o regime. Essa possibilidade pode ser facilitada pelo desempenho muito positivo da economia cubana, que cresceu 12% (8% é o dado do CIA) em 2005, como conseqüência dos altos preços do níquel e do cobre no mercado internacional e do baixo preço do petróleo, subsidiado por Hugo Chávez, que ainda paga bons salários a milhares de médicos e professores cubanos enviados para a Venezuela e a Bolívia.

Para os EUA, Cuba, tal como Israel, mais do que uma questão de política externa, é um problema de política interna e, por isso, se torna difícil antever a reação de Washington no momento em que a transição de fato ocorrer. Medidas restritivas à movimentação de pessoas e a remessas de divisas, visando a aumentar o isolamento de Cuba em relação aos EUA, foram adotadas nos últimos meses. Em julho, anunciou-se a designação de um coordenador para a transição em Cuba, com o mandato de desenhar e implementar uma ampla estratégia para acelerar a mudança de governo no país. Mais recentemente, Washington facilitou a concessão de visto para reunião familiar nos EUA a fim de evitar um temido êxodo, que não parece iminente.

Em Miami houve manifestações de júbilo pela enfermidade, mas, para sua frustração, os cubano-americanos pouco poderão influir nos acontecimentos políticos e econômicos na ilha, como sempre se pensou pudesse ocorrer. A alegria transformou-se em surpresa silenciosa. Os EUA parecem continuar sem entender o que está acontecendo, como se depreende das declarações equivocadas sobre o grave estado de saúde de Fidel na véspera da visita de Chávez - herdeiro presuntivo do líder cubano como revolucionário antiamericano -, da continuada percepção de que o regime é frágil e não sobreviverá ao desaparecimento de Castro e de que forças de fora poderão influir para uma transição democrática.

De qualquer forma, os obstáculos para a melhoria das relações com os EUA não são fáceis de superar, apesar das primeiras declarações de Raúl Castro favoráveis a um entendimento com Washington. Nos termos da Lei Helms-Burton "de solidariedade à liberdade a democracia em Cuba", se o regime que suceder ao de Fidel for presidido por Raúl Castro, o país não se qualificará para receber as vantagens de um abrandamento do embargo comercial e outras restrições ou ajuda bilateral. Outros requerimentos da lei também dificilmente serão atendidos por um regime raulista, mesmo se o irmão-herdeiro quiser começar um processo de liberalização política. A legislação determina, por exemplo, que todas as atividades políticas sejam legalizadas, que eleições livres para a formação de um novo governo sejam convocadas, que todos os prisioneiros políticos sejam libertados e que certas organizações repressivas do Estado sejam dissolvidas.

Enquanto uma nova legislação norte-americana não for aprovada, revogando a Helms-Burton e sua definição do que deveria ser um governo de transição, as relações entre Cuba e os EUA continuarão congeladas e o Hemisfério perderá mais uma oportunidade de reincorporar a ilha ao sistema interamericano, que, aliás, já aceitou até a China como membro observador.

A não-interferência dos EUA será fator básico na transição pacífica do regime em Cuba.

Rubens Barbosa, consultor, presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da Fiesp, foi embaixador do Brasil nos EUA e na Grã-Bretanha

 
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