terça-feira, agosto 22, 2006

DANIEL PIZA A corrupção das palavras

 A corrupção das palavras
fonte: O Estado de São Paulo 20 de agosto de 2006
Governos corrompem a linguagem também. Movidos pela propaganda, distorcem sentidos de palavras ao sabor de suas conveniências. George Orwell, o autor de 1984, sabia disso como poucos. No governo Lula, de tantas "despesas não contabilizadas", uma das palavras que foram mais achatadas, descarnadas, é elite. Elite, antes de mais nada, significa o que de melhor uma sociedade produz; é um termo de teor qualitativo. Mas agora virou insulto. Isso se vê, por exemplo, na campanha eleitoral de TV que começou na semana passada: ter uma origem humilde é a primeira e maior garantia de que um governo é ou será bom. Um sujeito "bem-nascido" é absolutamente incapaz de exercer política a não ser em seu próprio favor. Como se o PT tivesse feito outra coisa no poder!

É claro que elite, em uma de suas acepções, é a minoria no topo da pirâmide social ou, de acordo com o glossário marxista, a "classe dominante". Mas isso hoje no Brasil implica que se trata de um grupo monolítico em sua desonestidade e crueldade secular. Pertencer quantitativamente à elite – ou à elite branca, no pleonasmo do governador Claudio Lembo – é ser um rico que só é rico porque o dinheiro dos pobres é tirado deles. Daí decorrem duas características muito curiosas: nessa vala comum estão todos os cidadãos da classe média para cima, não apenas da alta; e normalmente quem a menciona se auto-exclui, mesmo que há mais de 30 anos tenha o perfil estatístico exato (patrimônios, valores, preconceitos, hábitos) dos que a compõem.

Outra ironia: todo o discurso anti-elite de Lula, Dirceu e companheirada é influenciado por leituras reducionistas de professores universitários que citam Raymundo Faoro e Celso Furtado a torto e não a direito. Foram os intelectuais do nobre Morumbi – inconscientes da fonte rousseauniana de seus conceitos supostamente originais sobre a pureza de Pindorama em face da "triste civilização" européia – que ensinaram a Lula que o Brasil é governado há 500 anos pelas mesmas pessoas. Fazer tábula rasa da história e da sociedade brasileira é o esporte da "intelligentsia" local, que endeusou Lula como porta-voz das massas e que agora – apesar de ele ter feito o contrário de tudo que foi sonhado, de ser tucanamente a alegria dos banqueiros e oligarcas – se agarram ao fato de que seu eleitorado é em grande parte formado pelos pobres de regiões como a nordeste. E perdoam nele o que não perdoariam em ninguém.

Isso nos leva ao ponto mais interessante de todos: nossa elite – o segmento dos tomadores de decisão nos mais diversos setores da sociedade e do Estado – é mais populista que elitista. Elitismo é a suposição idiota de que só a algumas pessoas é dada a possibilidade de adquirir conhecimento e criar idéias. Sua nêmesis, o populismo, diz representar a massa e saber a solução para seus problemas. Esse populismo vemos o tempo todo nas emissoras de TV, nas gravadoras de discos, nas direções dos partidos, no marketing das empresas. Eles sempre têm certeza do que o público "quer", e que isso deve ser o mais banal e vulgar possível. Nivelar por baixo, jamais por cima. Tábula rasa. Ou seja: eles têm o mesmo desprezo pela inteligência das pessoas que os elitistas. Na verdade, muitas vezes são as mesmas pessoas. E elas dão as ordens neste grande programa de auditório ou "reality show" que é a ideologia brasileira atual. Sob o doce véu do paternalismo, distribuem a esmola de hoje e não a oportunidade de amanhã. E vencem.