terça-feira, agosto 22, 2006

Cuba dois artigos, opiniões distintas


ESTADO

Jarbas Passarinho

O Estado de S. Paulo não se confunde com a opinião pessoal de seus articulistas. Não só defende a liberdade de expressão, que está entre os direitos fundamentais de um Estado de Direito democrático, como publica, quer na seção Fórum dos Leitores, quer em outro espaço do jornal, os pontos polêmicos de natureza política. Nós, os colaboradores que escrevemos na segunda página, o fazemos no Espaço Aberto. É, pois, absolutamente normal aceitarmos as reações civilizadas que promanam dos que nos lêem. Confesso, porém, que raramente tenho visto no jornal - e o leio diariamente - a contestação entre os próprios articulistas. Não direi que nunca existiu. Comigo mesmo ocorreu diálogo controverso, sempre guardado o tratamento polido. Até porque, como dizia Norberto Bobbio, dois monólogos não fazem um diálogo. Raymond Aron, no seu livro Polémiques, a respeito dos debates freqüentes que manteve com Jean-Paul Sartre, disse que eles não interditavam a esperança de incitar ambos à reflexão, porque "a verdadeira função da polêmica não é converter, mas ajudar cada um a compreender o outro". Não era assim, decerto, que pensavam Camilo Castelo Branco, em Portugal, e Carlos Lacerda, no Brasil.

Faço este preâmbulo, depois de ter lido o artigo do embaixador Luciano Martins (13/8) e, no dia seguinte, o da escritora e economista Eliana Cardoso (A2), sobre o mesmo tema: Cuba e a possível sucessão de Fidel Castro. Provável se a enfermidade, que o fez passar, em caráter temporário, o exercício do poder a um colegiado, não vier a disputar com as irmãs Parcas o penoso mister da morte, que o poeta Petrarca via como "o fim de uma prisão obscura para as nobres almas".

Não terá sido proposital a publicação da discordância, uma querela dirigida, nem sobre os meios, nem sobre os fins pertinentes à preferência ideológica do mais velho ditador do mundo. Há, sim, constatações da escritora e proposições do sociólogo que me dou o direito de estranhar.

Entre os "equívocos de interpretação" em que o ilustre sociólogo vê meias-verdades e demonização de Fidel, um é considerar prova de oligarquia a indicação do irmão do ditador para substituí-lo. Em Cuba não há dinastias políticas - diz ele - e Raúl Castro é vice-presidente constitucional. Contra-ataca: nos Estados Unidos há os Kennedys, os Bush, pai e filhos, e, na Índia, os descendentes de Nehru, Indira e filho. Como o ilustre embaixador representou o Brasil em Havana, entre 1999 e 2003, certo é que nenhum reparo faz a uma Constituição escrita por constituintes sem independência sob regime que define como "autoritário, de partido único, como a China". Rejeita chamá-lo totalitário. É indubitável que o professor conhece, nos compêndios de Direito Constitucional, a diferença que neles há a respeito de autoritarismo e totalitarismo. Arrimar-se no fato de que Raúl é vice-ditador constitucional é argumento fragílimo.

Em seguida faz uma ressalva quanto ao regime cubano: "Mas está longe de uma ditadura sanguinária do tipo latino-americano, como foram as de Pinochet, Vidella ou Médici." Durante os anos que passou em Cuba, dificilmente terá desconhecido os assassinatos coletivos no paredón, em 1959. Certamente também não sabe que, em 1961, Jesús Carrera, um dos chefes da guerrilha de Sierra Maestra, foi fuzilado na prisão de La Cabaña, e com ele centenas de antigos companheiros de armas de Fidel, porque contrários à adesão ao comunismo. Ou, condenados a dezenas de anos de prisão, heróis como Huber Matos, Carlos Franqui e o jovem universitário católico Armando Valladares, cujo livro Contra Toda a Esperança é dedicado, segundo suas próprias palavras: "À memória de meus companheiros torturados e assassinados nas prisões de Fidel Castro e aos prisioneiros que atualmente agonizam nelas."

Valladares, igualmente guerrilheiro sob comando de Fidel, recusou aceitar, em 1961, o adesivo colocado em sua mesa onde se lia: "Se Fidel é comunista, então também sou." Católico anticomunista, foi condenado à prisão por 20 anos. Torturado, espancado, misturado a outros presos num cubículo com a latrina propositalmente entupida de fezes, assistiu aos fuzilamentos diários. Desnutrido e à beira da morte, um Comitê Pró-Defesa de Valladares, presidido por ninguém menos que Fernando Arrabal, publicou um manifesto assinado pelo Prêmio Nobel Andrés de Wass, por Jorge Semprún, Ionesco e pela nata da esquerda francesa. O presidente François Mitterrand interveio junto a Fidel por Valladares. Este deixou a cadeira de rodas, medicou-se em hospital e, quando já podia andar, foi solto sob a condição de, na Europa, não atacar o regime.

Fidel disse, na ocasião, aos jornalistas estrangeiros que "a Revolução já tinha 25 anos e em Cuba nunca houve tortura nem assassinatos". Há poucos meses mandou matar quatro desesperados que tomaram a direção de um barco para levá-los para a Flórida. Antecipando-se à inevitável alegação da inautenticidade de uma Constituição modelada em regime ditatorial, retruca: "Há eleições com voto direto e secreto, ainda que para administrações locais, e uma Assembléia Nacional que se reúne uma vez por ano." Clement Attlee, ao voltar da China de Mao Tsé-tung, disse, ironicamente, que lá testemunhou a existência de eleições semelhantes, só que lhe lembravam corridas de cavalos com um cavalo só.

É por testemunhos inverídicos a favor de Cuba que a economista Eliana Cardoso, baseada na pesquisa do Barômetro Ibero-Americano, revela que 45% dos brasileiros simpatizam com Fidel Castro. Não simpatizam, veneram. Alguns, falseiam a verdade, e Lula, entrevistado por Boris Casoy, disse não acreditar em Valladares, porque não passa de um "picareta". Pudesse ele comparar os 20 anos de La Cabaña com 30 dias no Deops como hóspede do delegado Romeu Tuma...

Jarbas Passarinho, ex-presidente da Fundação Milton Campos, foi senador pelo Estado do Pará e ministro de Estado