Só nos resta admitir que somos todos co-responsáveis e parte integrante dos grandes impasses que aí estão EVIDÊNCIAS DE que os desarranjos em nossa sociedade são profundos estão por toda parte. Seguem algumas das mais recentes, apenas na área da segurança: quadrilhas organizadas deixam perplexa a sociedade brasileira, conseguindo espalhar grave confusão em São Paulo; policiais são obrigados a lacrar por fora a porta de prisões e mandados de soltura têm de ser executados içando homens de pátios superlotados, onde seres humanos estão confinados como gado; cadeias são utilizadas para organizar o crime, e não desorganizá-lo; e, finalmente, gangues recrutam maciçamente adolescentes pobres sem nenhuma perspectiva de futuro para serem braços armados de uma modalidade de guerrilha urbana. Perplexa diante desse quadro muito grave, parte de nossas elites insiste em seguir o esquema dos antigos "amos ausentes"; ou seja, tenta manter-se à distância, cercada de muros, seguranças e blindagens, cobrando dos políticos e dos governos -esses, com instrumentos cada vez mais precários- a missão de controlar, reformar costumes, manter a moral e civilizar. Mas os compromissos efetivos envolvendo as condições de vida das populações periféricas saem totalmente de seus radares. O desmoronamento das agências de ação coletiva faz parte do "alívio de cargas sólidas" (o termo é de Zygmunt Bauman) exigido pelas teses neoliberais, em nome de maior fluidez dos capitais e da melhora do "risco-país"; reveladoramente, para a lógica do capital, esse "risco" não cresce com o aumento da exclusão. O número de pobres, informais e marginais está em expansão, tornando tarefa impossível criar muros intransponíveis entre ricos e pobres, excluídos e incluídos, legais e ilegais. Até porque, o chamado "lado bom" demanda intensamente serviços informais e clandestinos. Basta lembrar os desmanches que abastecem oficinas ou as redes do tráfico que garantem as drogas de alguns de nossos jovens bem nascidos. Diante da imensidão desses desafios, urge um novo olhar onde o atual já não dá conta. Para Ignacio Izuzquiza, estamos acostumados a identificar a realidade com um particular sentido de solidez, com a rotina de todos os dias. Mas quanto mais sólidos nos sentimos, mais vulneráveis seremos para a surpresa. É enorme a capacidade de surpreender do conjunto de seres que formam as sociedades; um bom exemplo é a tecnologia de telefonia celular, otimizando a eficácia do crime dentro e fora das prisões. Sentimo-nos muito vulneráveis porque nos imaginamos sólidos. Izuzquiza propõe que aprendamos a viver em meio ao dinamismo, à insegurança, à ambigüidade e à variedade. Para tanto, é preciso renunciar às miragens de segurança e totalidade e desconfiar das cartilhas de ação, assumindo a desorientação como ingrediente necessário a toda criação. Para ele, é a luz da observação que nos permite viver positivamente a perda de referências, muitas vezes inaceitável, mas companheira inevitável do caminho. Entenderemos melhor uns aos outros se nos aceitarmos como perdidos e desorientados, vivendo num sistema onde o imprevisto é a regra e assumindo o perigo da ruptura, da morte e da decomposição. Mas é preciso muito refinamento para transgredir constantemente os limites atuais, continuamente enfrentando os novos. Nesse momento, reconciliamo-nos com Nietzsche e o seu super-homem, construtor de novos mundos por meio da derrubada dos falsos ídolos e da assunção plena dos riscos para tentar construir um mundo melhor. Só nos resta admitir que somos todos co-responsáveis e parte integrante dos grandes impasses que aí estão. Para tentarmos reagir, ajuda recuperar a capacidade de observar a realidade sem máscaras e filtros -tarefa complexa, na medida em que estamos continuamente distorcidos por mensagens e significados que nos querem impor. Não é à toa que a competência de bem observar era considerada pelos antigos como um atributo dos deuses. Os contemporâneos sempre se queixam da falta de referências para entender suas próprias épocas. Porém, a desorientação não é algo que possa ser combatido, e sim uma oportunidade desestabilizante para a busca de soluções. O importante é investigarmos a razão mais profunda das coisas que nos deixam perplexos e buscar caminhos, em vez de inventar entidades que aliviem nosso terror momentâneo, mas que criem outros.
GILBERTO DUPAS, 63, é presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI), coordenador geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP e autor de "O Mito do Progresso" (Editora Unesp), entre outras obras. |