sábado, junho 24, 2006

VEJA Morre o petismo, nasce o lulismo





Recorrendo a seu carisma, e à máquina do
Estado, Lula se descola do PT, cria corrente
e conquista apoio até de adversários


Marcelo Carneiro e José Edward

 

Fotos Celso Jr/AE, Fgv/CPDOC/Arq. Família Vargas/Rep. Oscar Cabral, Ag. JB, Leonid Streliaev e Fernando Llano/AP

CAUDILHOS DE ONTEM E DE HOJE
Da esquerda para a direita, Hugo Chávez, Juan Domingo Perón, Jânio Quadros e Getúlio Vargas. Ao fundo, o presidente Lula



Na crônica da América Latina, de tempos em tempos surge um tipo peculiar de governante. É aquele que, por força das circunstâncias e de um conjunto de características pessoais, acaba por criar uma corrente política que – invariavelmente batizada a partir de seu próprio nome – tem o poder de aglutinar em torno de si forças das mais diversas, independentemente de interesses partidários ou ideológicos. No Brasil, desde a morte de Getúlio Vargas, em 1954, a praga dos caudilhos parecia pertencer ao passado. Foi necessário que uma crise política eclodisse para mostrar que as coisas não eram bem assim. Ao soterrar o petismo, desmoralizar parte do Legislativo e expor a fragilidade das oposições, o escândalo do mensalão ajudou a abrir espaço para o surgimento de um novo fenômeno no cenário político brasileiro: o lulismo.

A alta popularidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mantida mesmo após o lamaçal de corrupção que manchou seu governo, soterrou seus principais ministros e revelou o estado de agonia ética de seu partido, por si só já evidenciaria o fenômeno. O cenário eleitoral, no entanto, vem mostrar quão gritante ele já se tornou. Embora Lula parta para a corrida presidencial contando com o apoio oficial apenas do minúsculo PRB , extra-oficialmente sua candidatura vem angariando apoio mesmo entre representantes da oposição. Um exemplo: na segunda-feira passada, em mais uma de suas inúmeras viagens com vistas à inauguração de obras inacabadas, Lula visitou a cidade de Santo Estevão, na Bahia. Lá, foi calorosamente recebido pelo prefeito Orlando Santiago, que, não bastasse o fato de ser do PFL, é um dos nomes sob a esfera de influência do senador Antonio Carlos Magalhães, hoje um dos principais críticos de Lula. O inusitado entusiasmo do prefeito pefelista diante da visita do presidente petista foi assim justificado por Santiago: "Não adianta se colocar contra essa vertente. Eu me rendo", disse. A "rendição", obviamente, não se deu em relação ao petismo. O prefeito, como muitos candidatos posicionados em trincheira oposta à do PT, rendeu-se ao lulismo.

 

LULÉCIO, LUCÁSSIO, LULÔNIO

O dado baiano está longe de ser isolado. O lulismo há muito ultrapassou as fronteiras do PT e da "esquerda". Tanto assim que, hoje, a pedra no sapato do candidato tucano à Presidência, Geraldo Alckmin, não atende apenas pelo nome de Lula. Para ganhar as eleições, Alckmin terá de superar adversários como Lulécio, Lual, Lucássio e Lulônio. Esses são os apelidos de alguns dos diversos comitês suprapartidários que defenderão ao mesmo tempo as candidaturas do petista para presidente e de correligionários ou aliados do tucano para governador. "Lulécio" é a mistura de Lula com o governador tucano e candidato à reeleição Aécio Neves, de Minas Gerais. "Lucássio" mescla o nome do presidente ao do governador Cássio Cunha Lima, da Paraíba, também do PSDB e igualmente candidato a um segundo mandato. "Lulônio" significa Lula para presidente e o senador do PSDB Teotonio Vilela Filho para governador de Alagoas. Já "Lual" é a mistura do candidato do PT com o pepista Alcides Rodrigues, que concorre ao governo de Goiás apoiado pelo tucano-mor do estado, Marconi Perillo. Curiosamente, todos esses tucanos que agora surfam na onda do lulismo foram soldados de Alckmin na guerra interna em que o ex-governador de São Paulo derrotou o prefeito José Serra no processo de escolha do candidato do PSDB à Presidência.

O abandono a que parece fadada hoje a candidatura Alckmin tem diversos precedentes históricos. O mais famoso deles ocorreu na campanha presidencial de 1950. Na ocasião, o poderoso PSD escolheu o oligarca mineiro Cristiano Machado para concorrer com o brigadeiro udenista Eduardo Gomes. Na última hora, porém, o PTB decidiu lançar a candidatura do ex-presidente Getúlio Vargas – que terminou por vencer as eleições com o mal disfarçado apoio dos correligionários do peessedista Cristiano. O episódio deu origem ao termo "cristianizar" – que, em política, passou a significar "jogar alguém às traças". No caso de Alckmin, é em Minas que sua cristianização pode lhe causar mais problemas. Entre analistas políticos, é unânime a opinião de que, sem uma votação expressiva no estado que representa o segundo maior colégio eleitoral do país, o tucano dificilmente reverterá a larga vantagem que Lula tem sobre ele nas pesquisas. Até o momento, nada indica que o governador Aécio esteja disposto a entrar firme na campanha federal. Embora venha insistindo em que está "absolutamente engajado" na candidatura de Alckmin, o governador tem tomado o cuidado de, ele próprio, relativizar os resultados desse "engajamento absoluto". "É óbvio que todos aqueles que acompanham a política de perto sabem que a transferência de votos é uma coisa limitada. Por maior que seja o esforço, não é fácil você fazer essa transferência absoluta", diz Aécio, cuja intenção de voto é, segundo as pesquisas, de estratosféricos 70 pontos porcentuais.

 

Ricardo Stuckert/PR

ELE RI, O PT CHORA
A alegre dupla Lulécio (acima) e o choro dos petistas diante das denúncias do mensalão

Ailton Freitas/Ag. O Globo

 

COMO NASCE UM CAUDILHO

A existência de uma liderança carismática com forte influência nas camadas mais pobres da população e pendor para comunicar-se diretamente com elas é o requisito básico do caudilhismo. Foi assim com Getúlio, no Brasil, e Perón, na Argentina. Tem sido assim com Hugo Chávez, da Venezuela, e com Lula, agora. No caso do petista, um fator adicional ajudou a fermentar a corrente que ele inspirou. A maior parte dos políticos latinos de linhagem populista era, na verdade, representante das oligarquias ou da classe média. À exceção do presidente da Bolívia, Evo Morales (de quem não se pode dizer que tenha inspirado uma corrente, ao menos por enquanto), nenhum deles tem uma biografia como a de Lula para exibir. "O fato de Lula ser um pobre que virou líder dos pobres lhe dá uma aura de predestinado, e ele faz questão de ressaltar isso", diz o sociólogo Francisco Weffort.

A força da imagem pessoal, sozinha, não faz um caudilho. É necessário que as circunstâncias colaborem. Fenômenos como o getulismo e o peronismo são resultado de um caldo em que têm de estar presentes ao menos três ingredientes: alto índice de desigualdade social, baixo grau de escolaridade da população e descrédito das instituições. No Brasil, o esfacelamento dos partidos foi decisivo na formação do lulismo. Em 2002, na esteira da eleição de Lula, o PT elegeu 91 deputados federais, a maior bancada do Congresso. Hoje, reduzida a linha auxiliar do projeto de reeleição, a legenda deve fazer, no máximo, 75 parlamentares. Na oposição, o cenário não é mais alvissareiro. O PSDB, que nunca conseguiu se firmar como um partido nacional, caminha a passos largos para a peemedebização – ou seja, a regionalização da sigla, cujos líderes se mostram muito mais preocupados com seus próprios e, muitas vezes, conflitantes interesses do que com um projeto nacional. O PFL navega a reboque do PSDB, ao qual ofereceu o candidato a vice na chapa com Alckmin. "É esse cenário que abre espaço para políticos que preferem a interlocução direta com as massas", explica a cientista política Lúcia Hipólito.

Ainda no terreno das circunstâncias, dois outros fatores tiveram papel fundamental na construção do lulismo: em primeiro lugar, o esforço deliberado dos dirigentes petistas (e do próprio Lula, é claro) em livrar o presidente de envolvimento no escândalo do mensalão – o que fez com que Lula conseguisse descolar sua imagem da do seu naufragado e corrompido partido (que a filósofa petista Marilena Chauí, em mais um de seus recorrentes ataques de ingenuidade, acredita que vá dar o tom de um eventual segundo mandato de Lula – pobre filosofia brasileira...). Em segundo, o uso desvairado da máquina pública como forma de reforçar a imagem getulista de "pai dos pobres". De programas como o Bolsa Família a empréstimos para aposentados, o governo tem inflado os gastos em projetos assistenciais a ponto de fazer crescer em 20% ao ano o volume de gastos no setor, enquanto a economia registrou um aumento médio de apenas 2,5%. Além de agradar aos pobres com um assistencialismo que se auto-alimenta, Lula também não tem descuidado da tarefa de produzir, ao mesmo tempo, apoio político e de mídia com base na manjadíssima estratégia de distribuir concessões de rádio e televisão a políticos aliados. Desde 2003, segundo levantamento do jornal Folha de S.Paulo, o governo aprovou a concessão de 110 emissoras educativas (não comerciais). Desse total, sete TVs e 27 rádios foram parar nas mãos de políticos.

 

"CRISTIANIZADO"?
Alckmin, candidato do PSDB: apoio em Minas é fundamental para o tucano

 

"TERCEIRO MANDATO"

A seu favor, há que lembrar que Lula não é um populista clássico – ao menos no que diz respeito ao gerenciamento da economia. Até agora, ao contrário do seu colega Hugo Chávez, que torra milhões de petrodólares com suas megalomanias, produzindo inflação e descontrole fiscal, Lula tem preservado os fundamentos da economia. "Seu discurso de identificação com os pobres se manifesta mais como tática eleitoral do que como projeto de governo", diz o cientista político Walder de Góes. "Lula é um populista funcional", define o analista político Gaudêncio Torquato. Para o ex-petista Cristovam Buarque, isso não é garantia de que um segundo mandato de Lula estará blindado contra aventuras populistas ou de caráter autoritário. Na semana passada, ao lançar sua candidatura à Presidência, o senador declarou temer a reeleição do presidente, especialmente se ela viesse acompanhada de uma consagradora votação em primeiro turno. "Meu medo é que ele queira um terceiro mandato", disse Cristovam, sugerindo que Lula poderia até mesmo tentar reformar a Constituição para perpetuar-se no cargo. Tamanho disparate certamente encontraria a resistência do Congresso, da Justiça e da opinião pública. Além disso, a trajetória política de Lula não permite, ao menos até o momento, supor que ele considere uma iniciativa dessa natureza. O surgimento do lulismo, no entanto, é um sinal de alerta. Como lembra o filósofo Roberto Romano, da Unicamp: "Quanto mais um país depende de pessoas, e não de instituições, menos republicano ele é". Qualquer que seja o resultado das eleições, aos brasileiros interessa que nenhuma anormalidade institucional sacuda a vida do país. Mesmo porque o último ano do governo Lula foi suficiente para que o Brasil esgotasse sua cota de suportar perplexidades.

 

À moda da casa

O que o lulismo herdou de outras correntes
que surgiram no Brasil e na América Latina


Reprodução/Ricardo Chaves


GETULISMO:
o "protetor
dos excluídos"

Assim como o ex-presidente Getúlio Vargas (1882-1954) era conhecido como "pai dos pobres", Lula tem no paternalismo e no assistencialismo seus principais canais de comunicação com a faixa mais pobre da população

 

PERONISMO: a proximidade com os sindicatos
Juan Domingo Perón, que governou a Argentina de 1946 a 1955, fez dos sindicatos a base de sustentação do seu poder. Lula, fruto do movimento sindical, usa o seu berço político como instrumento de pressão contra a oposição

Irmo Celso


JANISMO:
discursos sob encomenda
Lula adota a mesma estratégia do ex-presidente Jânio Quadros ao adequar seus discursos de forma a agradar ora ao mercado financeiro ora às bases do PT. Na eleição de 1960, Jânio prometia aos banqueiros o respeito à propriedade, aos pobres o "fim da carestia" e aos intelectuais a reaproximação com o bloco soviético

 

Fernando Llano/AP


CHAVISMO:
contra "as elites"
O discurso da perseguição pelas elites, um clássico da oratória do presidente venezuelano Hugo Chávez, tornou-se o mote preferido de Lula no auge da crise do mensalão

 

Fontes: Boris Fausto (USP) e José Luciano de Mattos Dias
(Instituto Brasileiro de Estudos Políticos)

Com reportagem de Camila Pereira