Numa eleição atípica, com verticalização
e cláusula de barreira, Lula começa forte
mas não consegue escapar do isolamento
Otávio Cabral
Luiz Inácio Lula da Silva é o único cidadão brasileiro que concorreu em todas as eleições presidenciais diretas realizadas no país desde a volta da democracia, em 1985. Agora, na sua quinta disputa consecutiva, Lula dá a arrancada a bordo de um duplo ineditismo. Com 45% das intenções de voto, o que lhe garantiria a vitória no primeiro turno, Lula nunca começou a disputa com desempenho tão forte na preferência do eleitorado – mas, com uma aliança que incluiu até agora apenas o minúsculo PRB, Lula também nunca disputou uma eleição com apoio partidário tão raquítico. A cúpula do PT ainda tem esperanças de ampliar a aliança até 30 de junho, último dia para que os partidos realizem suas convenções e decidam sobre seus aliados formais. As negociações dos petistas já naufragaram com o PSB, mas ainda estão vivas com o PCdoB, legenda que acompanhou Lula em todos os pleitos presidenciais. O desejo de Lula era oficializar sua candidatura à reeleição – ato previsto para sábado 24, em Brasília – junto com um leque amplo de aliados. Não deu certo. O aparente paradoxo, no qual o candidato mais forte é o mais solitário, explica-se pela conjunção de duas normas: a verticalização e a cláusula de barreira.
Criada na eleição passada, a verticalização exige que os partidos reproduzam nos estados a aliança selada em âmbito nacional. Na semana passada, por exemplo, o PSDB e o PFL oficializaram a chapa que concorrerá ao Palácio do Planalto com Geraldo Alckmin e José Jorge – e isso significa que tucanos e pefelistas terão de andar de braços dados em todas as alianças nos estados. Em virtude da verticalização, Lula não conseguiu consumar o matrimônio mais desejado no preâmbulo da campanha – o PMDB, cujos diretórios, na maioria, até queriam apoiar Lula, mas têm rivalidades incontornáveis com o PT no nível estadual. Já os pequenos partidos, como PCdoB e o próprio PSB, não teriam dificuldades de se aliar ao PT nos termos da verticalização – o problema, aí, é a cláusula de barreira. Introduzida nesta eleição pela primeira vez, a cláusula de barreira exige que cada partido, na eleição para deputado federal, obtenha pelo menos 5% dos votos de todo o país, dos quais 2% sejam distribuídos em nove estados. O partido que não cumprir essas exigências deixará de ter acesso ao horário gratuito no rádio e na TV e perderá o direito de receber recursos do fundo partidário.
A cláusula de barreira não é ameaça para gigantes como o PMDB ou o PFL, mas é uma questão de vida ou morte para os pequenos, como PV, PSB e PCdoB. Assim, o círculo se fecha: o partido que se aliar ao PT de Lula deverá ficar aliado nos estados – e, diluído numa aliança, o partido terá dificuldade de obter 5% dos votos. "A cláusula de barreira é séria, não dá para brincar. A margem de segurança recomenda prudência. Se passar, há vida. Caso contrário, é a morte do partido", avalia o presidente do PSB, Eduardo Campos, cujo nome chegou a ser cogitado para vice de Lula, cargo que acabou ficando, de novo, com José Alencar, do PRB. "Se não houvesse verticalização e cláusula de barreira, Lula teria a maior coligação. A máquina do governo e seu favoritismo nas pesquisas são um atrativo para os partidos fisiológicos", diz o cientista político Murillo de Aragão, da consultoria Arko Advice. O raquitismo das alianças de Lula deve-se também ao próprio PT, cujas pretensões hegemônicas à esquerda seguem indisfarçáveis. O caso mais emblemático é o de Pernambuco. Apesar de o socialista Eduardo Campos estar à frente nas pesquisas para o governo do estado, o PT insiste em manter a candidatura de Humberto Costa, ex-ministro da Saúde.
Roosewelt Pinheiro |
O ex-presidente Sarney: agora, negociações de "porteira fechada" |
"O salto alto do PT pode até atrapalhar a reeleição de Lula. Nem mesmo após o mensalão e a crise ética do partido os petistas aprenderam a abrir espaço para aliados", analisa o cientista político David Fleischer, da Universidade de Brasília. No Distrito Federal, a legenda ainda não aceitou dar passagem nem a seu aliado mais fiel, o PCdoB. Um dos principais líderes do partido, o ex-ministro Agnelo Queiroz é candidato ao governo do DF, mas o PT mantém na disputa o nome da petista Arlete Sampaio. A intransigência do partido talvez se assente no fato de que todas essas agremiações nanicas acabarão apoiando Lula na disputa pela reeleição, tenham elas recebido ou não o tratamento que desejavam. Só assim esses partidos vão manter cargos no governo, pelo menos até a eleição, e ainda terão chance de participar de um segundo mandato, se houver. O maior prejuízo fica na conta do candidato Lula, que perderá a oportunidade de fazer crescer sua fatia no horário eleitoral gratuito de rádio e TV. Uma simulação feita pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostrou que o PT, com apenas o PRB a seu lado, teria direito a pouco mais de oito minutos de propaganda, contra mais de onze minutos do tucano Geraldo Alckmin. Se conseguir atrair o PCdoB, o tempo de Lula poderá saltar de oito para quase dez minutos.
A escassez de aliados formais, além de reduzir sua fatia no horário eleitoral gratuito, pode trazer problemas cabeludos para um eventual segundo mandato de Lula. Afinal, com o escândalo do mensalão e as denúncias de corrupção no governo, a bancada do PT deve cair substancialmente. Em 2002, o PT elegeu 91 deputados. Agora, as previsões dos especialistas variam bastante, mas nenhum deles acredita que o partido seja capaz de eleger mais do que 75 deputados. A base aliada, como um todo, deve perder peso. O Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) e a consultoria Arko Advice, que trabalha com estudos de tendências políticas, fizeram projeções para as eleições de 2006. Cruzando-se a média das duas projeções, tem-se que a base governista deve cair de 267 para 206 deputados. Ou seja, em 2002, os aliados eram maioria na Câmara dos Deputados, chegando a 52% dos parlamentares. Na previsão de agora, serão no máximo 40%. O resultado disso é que, num segundo governo, para obter maioria parlamentar Lula ficará mais dependente do PMDB – partido que, sozinho, poderá abranger quase 20% dos deputados
"A importância do PMDB já é grande e será ainda maior", prevê o cientista político Antônio Augusto de Queiroz, do Diap. "Será impossível governar sem o PMDB, e isso fará com que o passe do partido se torne muito mais caro", completa ele. Hoje, a legenda está dividida entre os governistas, liderados pelos senadores José Sarney e Renan Calheiros, e os oposicionistas, que são comandados pelo deputado Michel Temer. Parece ilógico que um partido assim, que não passa de uma confraria de interesses regionais, incapaz até mesmo de decidir se é governo ou oposição, vá conseguir um bom desempenho nas urnas. Mas isso se deve à imensa capilaridade do PMDB, cujos diretores estão presentes em todos os estados e na esmagadora maioria dos municípios do país, e à sua lista de fortes candidatos a governador – que podem vencer em até quinze estados. A questão central é saber como um segundo governo Lula pretende atrair aliados no Congresso. No governo atual, como se sabe, a isca veio na forma do mensalão, na compra despudorada de apoio com o pagamento de recursos de origem ilícita.
Neste momento, o governo parece disposto a trocar o mensalão pela "porteira fechada", expressão que os políticos usam quando ganham o direito de nomear todos os funcionários de determinado órgão, da alta cúpula até os integrantes dos escalões inferiores. Nesta semana, em sinal de boa vontade, o governo deverá dar posse ao novo ministro da Saúde, Paulo Lustosa, do PMDB – que levou o ministério com "porteira fechada". Ou seja, o PMDB, além do ministro, poderá trocar até a recepcionista. Em troca de apoio futuro, o PMDB também negocia ocupar, ainda no atual governo, diretorias de outros seis órgãos federais, entre os quais a Petrobras e os Correios. Em um eventual segundo mandato, o PMDB já apresentou sua fatura. "Se tivermos mais de 100 deputados, vamos exigir de seis a oito ministérios para apoiar o governo", anuncia um dos dirigentes do PMDB governista. Como no atual governo a maioria parlamentar foi formada na base do mensalão, é lamentável constatar que o leilão de cargos numa negociação abertamente fisiológica entre o PT e o PMDB não deixa de representar um avanço.