O Globo |
25/1/2006 |
Os Estados Unidos mantêm uma relação comercial com a América Latina de US$ 150 bilhões, quase tão grande quanto com a Europa. Claro que a maior parte disso é com o México, mas a relação entre os países latino-americanos e os Estados Unidos está mal em todas as áreas. As eleições deste ano podem aumentar o grau de hostilidade em relação à primeira potência. "Washington está perdendo a América Latina?" Essa é a pergunta feita na última edição da revista "Foreign Affairs". Quem assina o ensaio é Peter Hakim, presidente do Inter-American Dialogue. Ele acha que a relação está em crise e que não há sinal de que vai se revigorar em curto prazo. Distribui as culpas. De um lado, os países da região têm falhado em manter o crescimento sustentado, em superar velhos problemas, como a pobreza, e em concluir reformas. Do outro, o governo Bush relegou a região a uma posição periférica na política externa, não tem tido qualquer proposta inovadora, nem quer derrubar as barreiras comerciais contra produtos agrícolas. Para Peter Hakim, a região tem falhado até no tão comemorado avanço democrático. Apesar de o tempo das ditaduras ter ficado para trás, há muita instabilidade política na área. "Na última década, 12 presidentes eleitos foram tirados do cargo, muitos por manifestações de rua e protestos violentos." Diz também que a Venezuela de Chávez dificilmente pode ser classificada como democracia. Falhas institucionais existem na região e, num momento tão animador, com tantas eleições e renovação, é bom refletir. O risco nesta revisita aos velhos clichês que estavam em voga nos anos 60 e 70 é esquecer que o desafio é governar de forma competente. A Bolívia passa por uma verdadeira renovação de quadros. O novo governo está nomeando pessoas novas, ligadas aos indígenas, cheias de boa vontade e sem experiência. Se o objetivo for gritar slogans contra os Estados Unidos, não sairão do lugar. Até porque hoje a presença dominante na economia boliviana é a brasileira. Vencida a inflação e restaurada a democracia, o grande desafio da região é crescer e reduzir a pobreza. Isso é uma tarefa para os latino-americanos. Os Estados Unidos, se quisessem, teriam muito a ajudar, mas a visão de sua política externa é tosca. No governo Bush, é ainda mais rudimentar. Eles temem a vitória de Daniel Ortega, como temiam a de Evo Morales. Ainda que Nicarágua e Bolívia declarem-se inimigos dos Estados Unidos, em que isso ameaçará a maior potência do mundo? Washington olhou com desconfiança a visita de Hu Jintao à região, até porque o comércio da China com a América Latina multiplicou por seis vezes em seis anos. Bobagem, a China quer se consolidar é na Ásia e vai brigar com os EUA por Taiwan. A visita do líder chinês criou muitas expectativas por aqui, mas foi decepcionante. Os Estados Unidos estão até hoje ofendidos porque, dos 34 países latino-americanos e do Caribe, apenas sete apoiaram a guerra; seis deles, países da América Central que estavam em negociação comercial com Washington e o outro, a Colômbia, que estava recebendo uma bolada dos EUA. Estão ressentidos também pelo fato de que, na última reunião da OEA, seu plano de monitorar a democracia foi rechaçado. A iniciativa era anti-Chávez, mas, mesmo quem não gosta do venezuelano, não quis apoiar uma proposta esquisita dessas. Temem agora a "esquerdização" da América Latina com aquela visão ultrapassada da guerra fria. O antiamericanismo cresce na região pelo mesmo motivo que cresce no mundo: uma pesquisa recente da Zogby mostrou que 86% das elites latino-americanas desaprovam a maneira como os EUA conduzem seus conflitos no mundo. Por outro lado, os novos líderes da região fariam melhor se, em vez de revisitar o passado, procurassem as raízes dos males latino-americanos em nossas próprias escolhas. Estados Unidos e certos líderes que estão se destacando agora, na atual onda eleitoral, estão errados. Pelo mesmo motivo. Estão vendo o mundo com olhos velhos. Os EUA temem um inimigo hipotético mesmo depois do fim da guerra fria; os novos líderes acham que, com a retórica contra o "imperialismo" nos moldes dos anos 60, resolverão os problemas regionais. Na Argentina, a inflação está voltando e pondo em risco o crescimento; a Venezuela continua dividida com grandes taxas de crescimento após grandes quedas do PIB; a Bolívia é um país pequeno que depende do capital externo — no caso, o brasileiro — para desenvolver sua principal riqueza, o gás. Nenhum governo da região tem capacidade de reestatizar o que foi privatizado, nem faria sentido fazê-lo. Mudanças radicais na economia podem levar a crises sérias. Na Bolívia, há um agravante: o câmbio é administrado e o país pode ter crises como a dos anos 90 no Brasil. O mundo inteiro está crescendo velozmente, os olhos dos investidores estão de novo sobre a Ásia, e a América Latina está fazendo um mergulho no passado. O fim disso pode não ser bom. Um diplomata brasileiro conversava com uma autoridade chinesa dias atrás e ouviu o seguinte: — A democracia não deu certo na América Latina, não é? Provocou problemas econômicos. Na visão do chinês, a democracia não é um valor importante; para nós, ela é valiosa. Mas é preciso que os líderes regionais, eleitos democraticamente, acertem na economia, para que não se passe a idéia de democracia que atrapalha o crescimento. Para isso, é preciso evitar novas frustrações, aumentando a taxa de eficiência das políticas públicas. |