quinta-feira, janeiro 26, 2006

Miriam Leitão Brasil velho

O GLOBO


O Brasil é assim: quando menos se espera, o passado volta. Nos últimos anos, os observadores da cena econômica comemoraram as boas notícias da indústria sucroalcooleira: ela se transformou na mais competitiva do mundo; usinas adotaram novos padrões de produção; as exportações cresceram. De repente, o setor tira do guarda-roupa o modelito retrô e pede a volta dos subsídios e dos favores do Estado.

A cada reunião em Brasília, eles aumentam a conta. Na reunião de segunda-feira, pediram o inimaginável: R$ 22 bilhões em financiamentos e subsídios para estabilizar preço e produção. Querem dinheiro para formar estoques, querem dinheiro para construir mais 73 usinas, querem dinheiro para ampliar a área plantada. Ou seja, querem estatizar o setor.

Só no Brasil empresas privadas pedem estatização. Por que será que o governo é que tem que garantir a construção de usinas? Se há demanda, haverá quem faça. Com a demanda crescendo, haverá certamente mecanismos de mercado de formação de estoques, porque será um bom negócio. Além do mais, é do interesse do próprio setor, porque a oscilação excessiva dos preços pode afugentar o consumidor.

Tudo se passa como se as leis do capitalismo não funcionassem no Brasil. O raciocínio dos nossos capitalistas é assim: há falta do produto, o preço está subindo, portanto, o Estado tem que garantir o aumento da oferta. Se o preço subir muito, os consumidores vão preferir outro produto, principalmente agora com os carros bicombustível. Um dos argumentos usados na reunião da segunda-feira é espantoso. Os empresários querem financiamento para garantir o abastecimento nacional e internacional. Ou seja, o Tesouro brasileiro é que tem que pagar para que o consumidor internacional tenha o produto que quer.

Não há falta de produto, o país está na entressafra. Se há um problema, é pontual e temporário. A nova safra será em abril, podendo se antecipar para março. Se a demanda de álcool cair, não haverá prejuízo para quem investiu em aumento de produção, basta aumentar a produção de açúcar.

Se há um setor que pode ser adaptado a diversas condições de demanda é este. O açúcar é commodity, o álcool está criando um mercado vigoroso. Diante das boas perspectivas, agentes privados podem se interessar em fazer estoque.

Mas e o carregamento de estoque com esses juros altos? Pode-se perguntar.

Os juros são um constrangimento para a economia inteira, mas o fato é que produtor agrícola tem empréstimo a 8% no Banco do Brasil, e indústrias pagam TJLP, que está hoje em 9%. É um pouco mais que isso, pelas taxas de administração dos bancos, mas a amarga Selic é paga mesmo pelo governo. O mesmo governo que garante os recursos que serão emprestados via BB e BNDES a taxas mais baixas. Ou seja: ele toma mais caro e empresta mais barato. O nome disso é subsídio.

Quem é que disse que são necessárias 73 usinas e por que isso é levado a Brasília? É natural, até desejável, que empresários façam planejamento estratégico e se perguntem como será o futuro. Diante dos cenários que considerem mais prováveis, elas fazem seus investimentos. Mas, se o setor faz um planejamento conjunto e quer garantias estatais de financiamento e execução do projeto, estamos de volta à época em que o Estado organizava os cartéis do setor privado e mandava a conta dos prejuízos e dos planejamentos errados para o Tesouro.

O setor de açúcar e álcool no Brasil é um caso de sucesso. A produtividade aumentou e continuará aumentando. Para a próxima safra, a área plantada aumentou 4,5%; a produção vai aumentar mais de 5%. O governo não tem nada a fazer. Até porque já faz bastante: com a mistura do álcool à gasolina, criou uma parte do mercado — de forma compulsória, a propósito — com o Banco do Brasil e o BNDES está financiando o setor. Acaba aqui a função do Estado.

O setor privado que vá à luta. Prefere, em vez disso, defender a tese de sempre: o setor é estratégico, por isso o Estado tem que garantir produção, expansão da oferta e formação de estoque. E os lucros? Ah, bom, os lucros serão do setor privado, claro, que ninguém é de ferro. E, na hora de pagar os impostos, vão ainda protestar pela excessiva presença do Estado na economia.

Eduardo Pereira de Carvalho, presidente da Unica, entidade que representa os usineiros, garante que, ao contrário do amplamente divulgado, não quer dinheiro do governo para formação de estoques.

— Não queremos dinheiro do governo para estoques, isso nós já fazemos com o nosso dinheiro. Nós queremos autorização para controlar esses estoques de forma integrada — explica.

A Unica quer, então, "unificar" os estoques, mas é dessa excessiva centralização que o Cade tem medo, num setor que tem longa tradição de ação cartelizada.

Os problemas atuais são atribuídos por alguns empresários ao sucesso das operações de combate à sonegação. Cria-se, assim, uma situação ainda mais estranha: deveria o governo não combater a sonegação para não criar problemas ao setor privado?

Em Brasília, nas reuniões da Câmara Setorial, os empresários estão pedindo um compromisso formal da equipe econômica de que saia da Cide o dinheiro que eles acham necessário no início da safra.

A Cide é aquele imposto que, durante o debate das últimas eleições, o presidente Lula mostrou que desconhecia do que se tratava. Pelo visto, mais gente não sabe. Sua função deveria ser melhorar as estradas, mas hoje qualquer caravana de empresário que vai a Brasília pedir dinheiro já desembarca com olho grande na Cide.