quinta-feira, janeiro 26, 2006

Merval Pereira Energia política

O GLOBO

DAVOS. A exuberância da economia chinesa, que domina os debates aqui no Fórum Econômico Mundial, tem aspectos colaterais não menos importantes que começam a ganhar espaço nas discussões sobre estratégias para o futuro. A sustentabilidade do crescimento médio de 10% ao ano, que fez a economia chinesa se transformar na quarta maior do mundo, obriga a acordos políticos para manter o suprimento de matérias-primas que podem afetar o equilíbrio do poder mundial, assim como a garantia do suprimento de petróleo está, para muitos analistas, na base da guerra do Iraque, muito mais do que os atentados de 11 de setembro de 2001.

O professor de história contemporânea da UFRJ Francisco Carlos Teixeira analisa o golpe que quase tirou Hugo Chávez do poder, com o apoio oficioso dos Estados Unidos, como uma tentativa de garantir suprimento de petróleo antes da invasão do Iraque. Da mesma maneira, acordos que a China tem com o Irã para garantir suprimento de petróleo fazem com que o novo gigante da economia mundial tenha pouca disposição para aceitar sanções contra o Irã no Conselho de Segurança da ONU, do qual é membro permanente com poder de veto.

Ao mesmo tempo, a busca crescente pela energia nuclear cria embaraços para a pressão política contra o programa nuclear do Irã, oficialmente voltado para fins pacíficos. O recente atentado a gasoduto no Cáucaso, e as anteriores interrupções de suprimento por questões políticas com a Ucrânia ou para abastecimento interno russo devido aos rigores do inverno, mostram o poder que a Rússia tem.

Não apenas no jogo político regional com os países do Leste Europeu, antigos integrantes da União Soviética, mas também com repercussões na Europa Ocidental, que depende da distribuição do gás russo. E fizeram com que vários países europeus começassem a repensar seus programas de energia nuclear, para não ficarem reféns de tipos de energia que dependem dos países que possuem as reservas naturais.

As dúvidas que essas situações geram serão abordadas em diversos painéis aqui no Fórum de Davos. Num deles, o objetivo é tentar entender se a aproximação com os países asiáticos significa que a Rússia vai se tornar cada vez mais um aliado de Japão, China ou Coréia do Sul, em vez de assumir uma identidade européia.

Outro painel vai analisar a mudança de atitude dos países em relação à energia nuclear, e qual o perigo que essa mudança pode trazer para o mundo. Ela afetará a capacidade de países sancionarem os que romperem com o Tratado de Não-Proliferação? A capacidade nuclear de países como Irã e Coréia do Norte é uma brecha para grupos terroristas?

Na semana em que Brasil, Venezuela e Argentina acertaram formalmente a construção de um gasoduto que cortará a América do Sul de cima abaixo, o mundo começa a debater a questão da energia como um instrumento político que está dando a países emergentes um poder que os coloca como protagonistas da cena internacional.

A idéia de que a América do Sul tem petróleo e gás suficientes para ser um parceiro internacional importante no equilíbrio desse mercado mundial vai ganhando força num mundo em que a questão da energia tem relevância econômica, mas, sobretudo, política.

É essa mudança que faz com que o assunto seja tratado como estratégico pelo governo brasileiro, dentro de um contexto mais amplo de integração econômica e política do continente. Os analistas reunidos aqui no Fórum Econômico Mundial consideram que a questão energética pode acentuar o caráter nacionalista de certos governos com tendências autoritárias, e em conseqüência afetar a eficiência da globalização.

O poder dos petrodólares do populista Hugo Chávez, que está comandando o Fórum Social Mundial em Caracas em uma direção politizada contra os Estados Unidos, embora continue sendo responsável por quase 20% do suprimento de petróleo norte-americano, é um exemplo de como a crise de energia internacional está mudando a geopolítica mundial.

Com o barril de petróleo na casa dos US$ 70 com viés de alta, o poder político de produtores como a Venezuela cresceu muito, embora seja um país com uma economia em frangalhos, a exemplo da Rússia, que tem na distribuição de gás para a Europa um trunfo político. Além do aspecto ambiental, que está seriamente ameaçado pelo aumento do consumo de combustíveis, especialmente pelas economias emergentes asiáticas, o preço do barril do petróleo levanta questões: a maioria das recessões após a Segunda Guerra Mundial foi provocada por choques de petróleo. Até quando a economia mundial absorverá o aumento do preço do barril de petróleo sem entrar em recessão? Quando chegará o momento em que investimentos em novas formas de energia se farão obrigatórios?

A crise aumenta a importância dos combustíveis alternativos como o biodiesel, no qual o Brasil se destaca. O ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, participará de um debate sobre o futuro da energia alternativa onde um dos temas centrais é se a negociação na Organização Mundial do Comércio pode acelerar o uso de biocombustíveis e organizar sua exportação.

A união das políticas energéticas da América do Sul, inclusive o polêmico plano da Venezuela de criar um programa nuclear conjunto, ganha relevo numa situação em que a escassez de matéria-prima e o perigo de corte de abastecimento adquirem caráter acentuadamente político, além do puramente econômico.