O GLOBO
Nos últimos dois dias, o presidente Lula encheu o ministro da Fazenda de elogios. Parece ter caído a ficha na cabeça presidencial: um governo com tantas fragilidades e incompetências não pode ficar sem um Palocci. Esta semana foi de dois dias tensos e dois dias mais calmos. Tudo está garantido... até à próxima tempestade.
Os fatos que alimentaram a crise foram, pela ordem: a entrevista da ministra Dilma Rousseff ofendendo uma tese que vinha defendendo junto com o ministro Paulo Bernardo; o silêncio inicial do presidente; os rasgados elogios públicos feitos pelo presidente à ministra Dilma Rousseff.
O ministro entendeu a soma dos três sinais como uma indicação de que o presidente Lula está interessado em mudar a política econômica para ter caminho livre para o populismo de campanha que lhe ajude a ganhar a eleição.
O superávit primário este ano foi mais alto do que o esperado não apenas no governo federal. Nos estados e municípios também. O país arrecadou mais do que o projetado. Gastou pouco em investimentos por uma série de barreiras e muita incompetência. Mas as despesas correntes estão crescendo 8% real ao ano. Se continuar assim, em dez anos, o número dobra. É insustentável.
Na semana passada, Palocci saiu do Senado mais forte; nesta semana, saiu mais forte da Câmara. Como o Brasil não é parlamentarista e ele não é primeiro-ministro buscando um voto de confiança, nada está resolvido.
Palocci é um craque diante do Congresso. Responde a todas as perguntas de forma cortês; não demonstra superioridade; em momentos de tensão, não perde a linha. Mostra respeito ao Parlamento. Impressiona. É um recordista em não escorregar nas cascas de banana que nós, jornalistas, jogamos por dever e arte do ofício.
Um quadro como Antonio Palocci faz bem à democracia. É difícil de formar e é lamentável que ele esteja tão enrolado com as denúncias sobre seu passado em Ribeirão Preto. Para qualquer analista que acompanhou apenas seu desempenho como ministro, fica difícil separar o que é denúncia consistente do que é o jogo político local. Mas o que impressiona é o acúmulo de denúncias. Sua explicação para não ter processado Rogério Buratti é inconsistente. Primeiro, porque Buratti não parece um perseguido. Seu primeiro depoimento teve excessos, é verdade, mas ele parece bem à vontade desde então. Segundo, porque ele não é um ex-assessor perseguido por ser paloccista, mas um ex-assessor que foi afastado por denúncias de irregularidades.
O passado complica o ministro. Ele tem explicações a dar e deve dá-las na CPI dos Bingos. Mas decisivo para detonar a crise atual foi o ataque da ministra Dilma Rousseff. Não foi um caso de natural e saudável antagonismo. Foi tentativa de fritura; explícita. O ministro sempre enfrentou oposição na bancada do PT e no governo. Na bancada, porque era considerado da "direita" do partido e tomou decisões que os petistas não aprovaram. Ele não denunciou qualquer herança maldita, não escolheu seus assessores por filiação partidária, não inventou qualquer idéia exótica na qual o PT pudesse se reconhecer. Ele foi homem de Estado, e não de partido. Isso foi imperdoável da perspectiva dos que ocuparam e lotearam a máquina com pessoas escolhidas por suas carteirinhas partidárias.
Por ter feito as escolhas que fez, o ministro Palocci debelou uma das piores crises de confiança vivida pelo país. Começou a vencê-la antes de ser nomeado ministro. Ele foi um dos redatores e o principal incentivador do compromisso público do então candidato Lula de continuidade nos princípios básicos da política econômica. A Carta aos Brasileiros é o momento em que se começou a vencer a crise de confiança em 2002.
A não ser por alguns poucos quadros, o PT sempre demonstrou ter uma visão tosca — ou rudimentar — de economia, finanças públicas, política monetária e cambial. Até a véspera da Carta aos Brasileiros, o PT defendia centralização cambial, moratória da dívida, rompimento com o FMI, controle de preços, câmaras setoriais, subsídios aos empresários e protecionismo.
Subsídio a empresários enriquece os ricos, controle de preços não controla preços e aumenta a corrupção, protecionismo aumenta a ineficiência da economia, câmaras setoriais fortalecem o lobby empresarial. Tudo junto faz o oposto do que uma esquerda decente tem que fazer; são medidas concentradoras de renda. Moratória, centralização cambial e rompimento com FMI são medidas de fim de mundo. Quando um país quebra, às vezes não há como não usar, mas têm um preço que se paga por gerações.
Tudo isso o país veio aprendendo desde os anos 70, quando essas idéias faziam sucesso. Depois, o Brasil evoluiu. Até os anos 90, havia quem dissesse no PT que combater a inflação era um projeto de elite.
No meio de muita velharia, Antonio Palocci conseguiu entender as novas idéias e apostar nelas. Por causa disso, ouviu muito desaforo. Houve uma vez, no começo de 2003, quando o país não crescia e a inflação estava ainda alta, que ele passou três horas apanhando da bancada do PT. A tensão esvaía-se no cigarro consumido um após outro. O que deu certo até agora no desempenho do PT na economia deve muito a essa capacidade de Palocci de se livrar do exotismo que freqüenta o imaginário do PT desde quando o ministro era trotskista.
Se ele sair do governo, todo mundo dirá que a política econômica não muda. Mas mudará. Palocci, como diz o deputado Delfim Netto, é o pau do circo. Sem ele, a lona cai.