sexta-feira, novembro 25, 2005

EDITORIAIS de O ESTADO DE S.PAULO

Decisão do STF pode provocar crise

A revolta de muitos deputados com o tratamento que o Supremo Tribunal Federal (STF) deu ao mandado de segurança impetrado pelo deputado José Dirceu, para mais uma vez tentar retardar o julgamento de seu processo de cassação pela Câmara, não causa surpresa. Causa, sim, apreensão, pelo risco que envolve de um inoportuno conflito entre o Legislativo e o Judiciário.

A rigor, essa revolta já estava latente desde o dia 19 de outubro, quando o STF julgou outro pedido de liminar formulado por Dirceu. Na ocasião, ele alegou que a acusação de participar do esquema do mensalão seria referente ao período em que estava na chefia da Casa Civil, motivo pelo qual não poderia ter ferido o decoro parlamentar. Embora o STF tenha negado a liminar, o simples fato de ter acolhido a demanda irritou os membros da Comissão de Ética da Câmara que, além disso, não se conformaram com os 3 votos favoráveis dados a Dirceu.

Duas semanas depois, quando o ministro Eros Grau anulou a sessão em que o Conselho de Ética recomendou por 13 votos contra 1 a cassação de Dirceu, vários parlamentares acusaram o STF de exorbitar, interferindo na autonomia do Congresso. E agora, com o empate no julgamento do mandado de segurança e a expectativa de que o último ministro a votar, Sepúlveda Pertence, venha a acolher a pretensão do deputado petista, muitos parlamentares se rebelaram contra o STF. O primeiro vice-presidente da Câmara, José Thomás Nonô (PFL-AL), propôs à Mesa que ignorasse a mais alta corte do País, colocasse em votação o processo de Dirceu e esperasse para ver se o Supremo teria coragem de derrubar uma decisão soberana do Legislativo.

Na realidade, esse conflito entre dois Poderes poderia ter sido evitado caso os ministros do STF tivessem, desde o início, agido com prudência e descortino. Eles poderiam ter rejeitado sumariamente o primeiro recurso de Dirceu, sob a justificativa de que a Justiça não pode imiscuir-se em assuntos internos do Congresso. Outra alternativa para o STF seria, tendo acolhido o recurso, agir como verdadeira corte constitucional. Ou seja, em vez de julgar as pretensões concretas de Dirceu, o STF poderia ter-se limitado a estabelecer, in abstracto, balizas jurídicas para a Câmara conduzir o processo de cassação do deputado.

Infelizmente, o STF não fez nem uma coisa nem outra. Alguns dos ministros - a começar pelo presidente Nelson Jobim - apresentaram votos com inequívoco viés político, enquanto outros se apegaram a um excessivo formalismo, o que resultou em votos confusos e decisões potencialmente perigosas para o equilíbrio dos Poderes. A principal alegação dos ministros é a de que a Câmara tem de respeitar "o princípio do devido processo legal", motivo pelo qual o Conselho de Ética deveria suspender o processo contra Dirceu até a produção de um novo relatório.

Pela Constituição, porém, esse princípio envolve basicamente o Judiciário e está relacionado ao rigoroso cumprimento da legislação processual pelos tribunais. Em outras palavras, ele não se aplica aos procedimentos correcionais do Legislativo. Desde que conceda direito de defesa a parlamentares acusados de quebra de decoro, a Câmara não é obrigada a seguir, artigo por artigo, o Código de Processo Civil. Ela não é uma corte, mas uma casa política e os processos que move contra seus membros, por quebra de decoro, são processos políticos e não judiciais.

Por isso, os membros da Comissão de Ética da Câmara têm razão quando acusam o STF de estar "judicializando a política". Pior do que isso é o que transparece do modo como Jobim contabilizou o resultado da sessão de quarta-feira. Ele incluiu entre os votos favoráveis a Dirceu o voto do ministro César Peluso, que mandou retirar do relatório o depoimento da presidente do Banco Rural, mas não interrompeu o processo de cassação. Na realidade, o resultado foi 6 a 4, e não 5 a 5, o que torna dispensável o voto de Sepúlveda Pertence. Foi por isso que muitos deputados pediram à Mesa da Câmara que não só questione judicialmente a contabilidade de Jobim, como também que mantenha a data marcada para o julgamento, pelo plenário, do processo de cassação de Dirceu.

Evidentemente, isso só tende a agravar o conflito entre os dois Poderes, deflagrando uma grave crise institucional que ninguém sabe como poderá terminar.


Desajeitado e insensato

Alguém pode imaginar a diplomacia brasileira tentando convencer outros governos, durante uma negociação comercial, a adotar programas de renda mínima e direitos de aposentadoria para seus cidadãos? O senador petista Eduardo Suplicy pode. Mas ele não se limita a imaginar. Ele inclui essa nobre missão entre os objetivos da política brasileira de comércio exterior. Por aí se pode calcular o grau de insensatez do Projeto de Lei 4.291, de 2004, destinado a fixar "os objetivos, métodos e modalidades da participação do governo brasileiro em negociações comerciais".

Se essa amostra parece espantosa a qualquer cidadão com um nível razoável de bom senso, ainda mais espantosa é a tramitação desse projeto, apresentado em 2003 pelo senador Suplicy. Passou pelo Senado, chegou à Câmara, com pequenos retoques, e poderá converter-se em lei. Se isso ocorrer, será um trambolho para qualquer negociador comercial também dotado de uma boa dose de bom senso.

Esse projeto foi evidentemente inspirado ao senador Suplicy pelos defensores do neoterceiro-mundismo imperante, a partir de 2003, no Itamaraty e na assessoria internacional do Palácio do Planalto. O texto é formado por duas categorias de proposições: as meramente redundantes, porque se referem a objetivos normais da política de comércio exterior; e as aberrantes. O conjunto é um despropósito.

Não tem sentido fazer uma lei para subordinar as negociações comerciais a objetivos como a conquista de mercados para bens e serviços brasileiros, a ampliação dos setores produtivos e o aumento da participação de produtos com maior valor agregado na pauta de exportações. Talvez o Conselheiro Acácio pudesse aplicar-se a um trabalho desse tipo, mas os brasileiros têm o direito de cobrar algo melhor de seus deputados e senadores.

Se ficasse nisso, o projeto seria apenas uma inutilidade. Mas o texto não é só acaciano. É também um trambolho ideológico. Por exemplo: os negociadores deverão discutir os chamados temas sistêmicos, como serviços, investimentos, propriedade intelectual e compras governamentais, somente nos foros multilaterais, "preservada a possibilidade de aprofundamento do Mercosul e de outros mecanismos de integração econômica entre os países em desenvolvimento, especialmente do continente africano".

Tudo isso é uma evidente bobagem. Os negociadores brasileiros têm procurado reservar esses assuntos, de fato, para os foros multilaterais da OMC e da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (Ompi). Mas isso é uma questão de conveniência, não de princípios. Se a diplomacia brasileira, fundada em motivos ponderáveis, julgar conveniente negociar alguns desses temas (compras governamentais ou investimentos, por exemplo) no âmbito da Alca ou dos entendimentos entre Mercosul e União Européia, deve ter liberdade para agir.

Igualmente insana é a exceção aberta somente para negociações com países em desenvolvimento. Mais aberrante, ainda, é a condição especial atribuída aos africanos. Não há justificativa racional e pragmática para isso.

O texto proíbe, nas negociações comerciais, compromissos relativos a assuntos trabalhistas, ambientais e na área financeira em geral, mas novamente se ressalvam os acordos com países em desenvolvimento. Vale novamente o argumento do pragmatismo e da conveniência, inacessível a quem usa antolhos ideológicos.

O texto contém outras tolices de calibre variável. Mas o projeto não é apenas uma soma de redundâncias e aberrações. Há bons argumentos para considerá-lo inconstitucional. Pelo artigo 84 da Constituição, compete privativamente ao presidente da República celebrar tratados, convenções e atos internacionais, "sujeitos a referendo do Congresso Nacional". O projeto estabelece condições para esse referendo, indicando objetivos e limitações para os acordos. Na prática, o projeto é uma tentativa de usurpação de atribuições exclusivas do Executivo. Desajeitadamente, como noutras ocasiões, o senador tenta com esse projeto copiar a legislação norte-americana.


A saída é sair

Faz tempo que uma verdade se tornou indiscutível: a única saída para os Estados Unidos no Iraque é sair. E faz tempo que a única questão relevante a respeito é como e quando. Dois anos e meio depois que um uniformizado presidente George Bush, em um evento coreografado para fins eleitorais, anunciou a cessação dos principais combates no que deixara de ser o feudo de Saddam Hussein, não há nem o mais tênue vestígio de luz no fim do túnel para um desfecho honroso da aventura bushista, muito menos para a "vitória" de que o presidente voltou a falar dias atrás. E ninguém com a cabeça no lugar imagina que a luz apareça.

Os trunfos que Washington tem a ostentar - eleições livres para a formação de uma assembléia nacional constituinte, a aprovação da Constituição e a escolha popular do primeiro governo iraquiano não transitório, marcada para 15 de dezembro - foram ou inócuos do ponto de vista da segurança interna ou fatores de acirramento da insurgência. O governo Bush conseguiu fazer do Iraque o que, para justificar a invasão, dizia que era - e nunca foi - sob Saddam Hussein: uma ponta de lança do terrorismo islâmico.

Já são 2.100 os soldados americanos mortos e pelo menos 15.800 os feridos. As baixas civis iraquianas, segundo as estimativas mais confiáveis, andam pela casa de 30 mil mortos e 50 mil feridos. A imagem dos EUA no mundo nunca foi tão negativa. E o que ela é no mundo árabe-muçulmano dispensa comentários. Nos EUA, a oposição à guerra se alastra, cruzando fronteiras políticas e partidárias: já é proporcionalmente maior do que aquela que demandava a saída das tropas do Vietnã - quando o conflito estava no auge.

A começar do vice Dick Cheney, os homens de Bush recorreram aos piores epítetos para desqualificar o candente apelo do deputado democrata John Murtha, na semana passada, pela retirada do Iraque. Ele é uma amostra da reviravolta americana: como a grande maioria dos seus concidadãos - e dos seus correligionários - apoiou a invasão. Hoje, até entre os políticos republicanos cresce o coro pela saída. Com uma eleição de meio de mandato pela frente e a questão iraquiana no centro das atenções, temem por suas cadeiras de deputado, senador ou governador se continuarem sendo yes-men da Casa Branca.

Diante disso, a secretária de Estado Condoleezza Rice admitiu terça-feira que o governo elabora um plano de desengajamento gradual - a primeira manifestação oficial do gênero. Segundo vazou, os efetivos americanos e aliados seriam reduzidos dos atuais 155 mil para 138 mil depois da eleição de dezembro e para 100 mil em meados de 2006. Do ponto de vista estritamente militar, a emenda é pior do que o soneto.

"Acho que o atual nível de forças americanas no Iraque não será necessário por muito mais tempo", argumentou Condoleezza, "pois os iraquianos continuam a fazer progressos não só em termos do número de soldados treinados, como de sua capacidade de executar certas funções." Nada mais longe da verdade. Os progressos de que ela fala são miragens. Se o objetivo fosse estabilizar o país, dando combate mais eficaz à resistência, os EUA deveriam aumentar a sua presença militar - uma patente impossibilidade.

Dias atrás, líderes iraquianos sunitas sugeriram um plano para evitar que o seu país mergulhe de vez na guerra civil da qual está cada dia mais perto - e diante dessa ameaça a impotência americana é um escândalo militar, político e estratégico. Eles sugerem chamar os mais preeminentes representantes do saddamismo para um acordo que lhes devolveria, em troca do fim da violência, participação no futuro governo nacional. Para atraí-los, produziram um documento que, embora condenando o terrorismo e os ataques a civis, considera a resistência "um direito legítimo" - o que enfureceu os americanos. O projeto prevê conversações com as facções rebeldes que se aliaram aos jihadistas apenas por motivos táticos, porque não pregam uma guerra santa contra o Ocidente, e a negociação de um cronograma para a redução da presença militar estrangeira no Iraque. Suas chances de êxito são, no mínimo, nebulosas. Na realidade, nada garante que a saída americana apaziguará os iraquianos. Já o prosseguimento da ocupação fará tudo ficar ainda pior.