segunda-feira, novembro 28, 2005

Denis Lerrer Rosenfield A perversão da ética

OESP

 

A sociedade brasileira muito avançou no que diz respeito a seus padrões de comportamento. Os valores da coisa pública e da moralidade passaram a ser valores universais, aos quais os partidos políticos e nossos representantes se devem adequar. O lema da "ética na política" se tornou propriamente um princípio, de validade universal, que oferece um parâmetro de juízo para qualquer ação. O mesmo, no tanto, não se pode dizer de partidos políticos e de muitos dos políticos, individualmente considerados, que teimam em infringir valores e princípios que deveriam necessariamente respeitar. Há, em nosso país, um descompasso entre uma sociedade cada vez mais esclarecida e políticos cujo comportamento se situa aquém dos padrões mínimos de moralidade pública.

A liberdade, por sua vez, é uma conquista dessa sociedade. Não podemos esquecer que a crise política atual nasce dos meios de comunicação e tem sido alimentada por investigações feitas por órgãos de imprensa, que puseram a nu a corrupção existente. Isso faz com que o desdobramento da crise seja imprevisível, pois imprevisíveis são os seus atores centrais, que não estão subordinados a nenhum partido. Parece ter passado o tempo em que conchavos partidários eram suficientes para impedir uma determinada investigação. Tentativas nesse sentido são feitas, porém têm freqüentemente esbarrado numa opinião pública atenta, que exige que os mesmos princípios sejam por todos observados. Não pode haver uma perversão da ética.

O governo atual, posterior a essas revelações e denúncias, não é o mesmo que assumiu o poder em 2003. Entre um e outro momento se estabelece todo um interstício em que a moralidade outrora defendida foi completamente pervertida. O presidente Lula perdeu ministros importantes como conseqüência da corrupção revelada, personagens mafiosos apareceram nas telas da TV e a cúpula petista foi totalmente renovada, inclusive com o fortalecimento das posições de suas alas mais à esquerda. Acuado, o PT e o presidente, em vários momentos, chegaram a falar de uma "refundação" e que o partido tinha caído numa vala comum de utilização de caixa 2, dos ditos "recursos não contabilizados". O partido da ética rasgou sua antiga bandeira. A sociedade brasileira, contudo, muito ganhou com isso, pois assumiu para si que a ética na política é um princípio e, como tal, se situa acima de todos os partidos.

Eis por que soa incompreensível que certos setores da oposição tenham dificuldades em reconhecer algo que a sociedade hoje proclama como seu. O PSDB, por exemplo, está tendo manifestas dificuldades em lidar com esse problema, na medida em que o ex-presidente do partido reconheceu publicamente ter utilizado recursos do caixa 2, provenientes do mesmo Marcos Valério. Embora dirigentes tucanos tenham parcialmente razão em distinguir um recurso proveniente do caixa 2 de uma empresa de recursos públicos desviados de uma estatal, essa diferença de grau não afeta um problema de essência, pois ambos constituem diferentes tipos de crime eleitoral e mesmo penal. Tampouco reduzir essa questão a um problema histórico que não mais vigoraria deixa em aberto o ponto central, o da transgressão de um valor moral hoje tido por princípio pela sociedade brasileira. Se a ética na política é um princípio de moralidade pública, ela vale para todos os partidos, contemplando todos os casos de transgressão, devendo eles constar dos relatórios das CPIs, sob pena de que o cidadão brasileiro reconheça aqui uma apropriação particular, pervertida, do que deveria ser um valor válido para todos.

A mesma questão se coloca agora a propósito do ministro Palocci. A sua posição se situa na encruzilhada entre vários fatores políticos, partidários e morais. Politicamente, Palocci está sendo bombardeado pelo conjunto do PT, em particular por suas alas mais à esquerda, que ganharam peso no novo Diretório Nacional. A ministra Dilma, por exemplo, verbaliza posições que são as da Democracia Socialista e dos grupos que se afinam com elas. O problema torna-se particularmente agudo por Lula vir a abraçar essas posições por razões eleitorais, como se tivéssemos uma coincidência entre Lula e as tendências mais à esquerda do partido. Nesse sentido, pode-se dizer que Palocci tem razão de sentir-se só. Partidariamente, os depoimentos do ministro da Fazenda no Senado e na Câmara foram particularmente bem acolhidos pelas oposições, como se estivéssemos presenciando uma ação entre amigos. As oposições foram apanhadas numa armadilha, como se, ao não averiguarem o passado de Palocci, estivessem fazendo um jogo contra o PT, quando, paradoxalmente, elas estão dando sustentação ao próprio governo Lula. Na verdade, as oposições estariam defendendo a política econômica do governo FHC, que se tornou, nesse meio tempo, a política lulista. Moralmente, contudo, o espectro do prefeito de Ribeirão Preto ronda o ministro da Fazenda. Quem acompanha as prestações televisivas do ministro fica com a impressão de que há dois Paloccis, que seriam homônimos. Na verdade, um não teria nada que ver com o outro. A equipe de um seria, digamos, mafiosa e a do outro, da mais ilibada moralidade. Há aqui, no entanto, um problema de fundo, pois esses dois personagens estão incorporados num mesmo corpo. Separá-los não é um problema fácil. Talvez só com exorcismo.

Cabe às oposições esse trabalho de exorcismo, se é que os princípios da moralidade pública estão acima de contendas partidárias. A sociedade exige esclarecimentos cabais e, por mais acertada que seja a política econômica, ela não se pode situar acima da moralidade que todos dizem defender. E neste quesito as respostas do ministro têm sido insuficientes e o comportamento de determinados setores da oposição, leniente. A sociedade brasileira progrediu, os nossos representantes ainda tergiversam.