Numa campanha estonteante, PT e
governo tentam dizer ao país que ter um
caixa dois é apenas uma irregularidade
menor. Não é. É roubo.
Alexandre Oltramari
Mônica Zarattini/AE |
"O que o PT fez do ponto de vista eleitoral é o que é feito no Brasil sistematicamente." Lula, presidente da República, justificando o caixa dois |
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Está em curso no país uma cascata destinada a ludibriar a platéia: a idéia é fazer crer que caixa dois é uma irregularidade menor, tão inofensiva quanto a do pipoqueiro que instala sua carrocinha em lugar indevido. A cantilena começou em julho passado, quando o presidente Lula deu uma entrevista durante sua viagem à França dizendo que o caixa dois do PT era algo "que é feito no Brasil sistematicamente". De lá para cá, o coro engrossou. O ministro Jaques Wagner, coordenador político do governo, tentou difundir a idéia de que caixa dois é uma irregularidade financeira, apenas. Na semana passada, mais duas autoridades vieram a público com a mesma intenção. O vice-presidente da República, José Alencar, admitiu que usou caixa dois em sua campanha ao Senado, em 1998, e afirmou que a punição pelo crime levaria à cassação "todo mundo" – ele, inclusive. O recém-eleito presidente do PT, Ricardo Berzoini, disse que o uso do caixa dois faz parte do "folclore político" do país. Ou seja: eles admitem que o caixa dois é ilegal, mas querem passar a impressão de que se trata de uma infração quase inofensiva, generalizada, insignificante.
Existem dois tipos de caixa dois. Um deles é o caixa dois do empresário ou do profissional liberal, cujo propósito é fugir do pagamento de impostos. É um crime grave e com conseqüências sérias, principalmente num país com uma devastadora concentração de renda como o Brasil, na medida em que subtrai clandestinamente recursos que deveriam ser canalizados para o benefício da coletividade. É disso que são suspeitos os donos da fábrica de cerveja Schincariol, que chegaram a ficar dez dias na prisão e estão respondendo a processo por sonegação de 1 bilhão de reais. A mesma suspeita recai sobre os controladores da butique Daslu, o templo de luxo de São Paulo. A dona da loja, Eliana Tranchesi, ficou algumas horas na prisão. Seu irmão, Antônio Carlos Piva de Albuquerque, passou uma semana atrás das grades.
J. F. Diorio/AE |
"Os santinhos foram para a minha campanha do Senado e não foram declarados. Então, o meu mandato tem de ser cassado." José Alencar, vice-presidente da República, admitindo o caixa dois em sua campanha |
O outro tipo de caixa dois é o eleitoral, esse que o PT e suas estrelas deram para minimizar. O caixa dois eleitoral não tem a intenção de sonegar impostos, pelo bom motivo de que partidos políticos – assim como as igrejas e as entidades filantrópicas – são isentos do pagamento de tributos. Então, se não é para sonegar, por que um partido faz caixa dois? "Porque precisa ocultar a origem do dinheiro. E, como financiar campanha política é uma prática absolutamente legal no país, só se precisa ocultar a origem do dinheiro quando ele é fruto de corrupção", diz o criminalista Aldo de Campos Costa, professor de direito da Universidade de Brasília. "O caixa dois eleitoral está sempre associado a crimes gravíssimos, como corrupção e lavagem de dinheiro", completa. "O curioso é que, enquanto a Daslu e a Schincariol negam ter cometido o crime, os partidos políticos não apenas admitem sua prática como ainda a justificam", diz o tributarista Gilberto Luiz do Amaral, presidente do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT).
Lula e seu PT querem propagar a idéia de que o caixa dois é coisa sem importância simplesmente porque foram metaforicamente – alguns, pelo menos – flagrados com dólar na cueca. Como não podem negar o crime, desprezam-no na tentativa de reduzir a pena. É sempre assim. Os políticos da Itália pilhados num grande escândalo de corrupção no início da década de 90, no qual apareceram tenebrosas conexões com a Máfia, fizeram o mesmo que os petistas: tentaram mostrar que o financiamento irregular de campanhas políticas era uma prática generalizada e que, portanto, ninguém deveria ser punido com rigor. Na Itália, porém, a catilinária não colou. Por aqui, a campanha para minimizar o caixa dois é tão acintosa que já chamou a atenção de juristas – e isso pode ser um passo para que o tratamento do assunto adquira mais seriedade.
Wilton Junior/AE |
"Não devemos ser hipócritas. Caixa dois é algo muito comum na política brasileira. O caixa dois é do nosso folclore político." Ricardo Berzoini, presidente eleito do PT, discorrendo sobre o caixa dois |
O próprio Tribunal Superior Eleitoral, a mais alta corte em assuntos de campanha política, pediu a uma comissão de especialistas que estudasse alternativas para endurecer a legislação punitiva em relação ao assunto. A idéia é acabar com o dramático histórico nacional: não se tem notícia de um político brasileiro punido com cadeia ao ser pilhado financiando sua campanha eleitoral com dinheiro clandestino. Nos termos do Código Eleitoral, o caixa dois é crime cuja punição pode ascender a até três anos de prisão, mas, em geral, o crime prescreve antes do julgamento. Além disso, como os réus costumam ser primários, a sentença de prisão, nas raras vezes em que chega a ser prolatada, é substituída pelo pagamento de multa ou prestação de serviço à comunidade. Com isso, criou-se um pântano de impunidade em que, como diria o vice-presidente da República, "todo mundo" é criminoso, mas ninguém é punido com o rigor que o crime demanda. Isso sem falar, é claro, na situação absurda na qual autoridades vêm a público desdenhar de um crime – não por acaso o crime que elas cometeram.