sábado, outubro 15, 2005

VEJA:5 mistérios e uma certeza-caso Celso Daniel

Os bastidores do caso Celso Daniel, o crime
com elementos de romance policial que
provoca calafrios na cúpula do PT


João Gabriel de Lima

 

Montagem sobre fotos Fabiano Accorsi, Jonne Roriz/AE, Lawrence Bodnar/AE, Fernando Pilatos/Futura Press, Samir Baptista/AE, Epitacio Pessoa/AE e Marcelo Alves/Futura Press
Celso Daniel e Carlos Delmonte (nos destaques): trama com assassinatos, enganos, corrupção, sexo, romance...


O cadáver de Celso Daniel, que jaz embalsamado no Cemitério da Saudade, em Santo André, ainda assombra o PT. Nos últimos dois meses, os dois irmãos do prefeito assassinado, João Francisco e Bruno Daniel, depuseram na CPI dos Bingos. Voltaram a bater na tecla de sempre – a de que dois petistas de alto coturno, José Dirceu e Gilberto Carvalho, puxavam os fios do esquema de corrupção que se instalou em Santo André. Nos próximos dias os irmãos serão colocados frente a frente com Gilberto Carvalho em uma acareação promovida pela CPI. Essa idéia provoca calafrios até no presidente da República – Lula declarou recentemente que a CPI dos Bingos estaria "perdendo o foco". Na quarta-feira passada, mais um morto se juntou à pilha de cadáveres de alguma forma relacionados com o caso. Carlos Delmonte Printes, médico-legista que fez a autópsia de Celso Daniel e constatou marcas de tortura, foi encontrado sem vida em seu escritório. Até sexta-feira o episódio ainda intrigava a polícia e o Ministério Público. O exame pericial descartou causas naturais como um ataque do coração, mas também não havia marcas de violência que sustentassem a hipótese de assassinato.

O crime que vitimou o prefeito petista, seqüestrado na noite de 18 de janeiro de 2002 e morto na tarde do dia seguinte, tem todos os ingredientes de um romance policial. Mistério, pistas falsas, sexo e luta pelo poder. A trama, no entanto, segue uma dinâmica peculiar: procura-se um assassino e, no lugar dele, são encontrados corruptos. Reduzido à sua essência, o caso se compõe de dois crimes. O primeiro é o assassinato do prefeito em si. O segundo, o esquema de corrupção formado na cidade que ele administrava. Há fortes indícios de que haja uma conexão entre ambos, mas não apareceu até agora uma prova definitiva. O primeiro crime, o assassinato, ainda está longe de ser solucionado. A polícia identificou e prendeu os integrantes da quadrilha que, na noite do dia 18, em São Paulo, seguiu o Mitsubishi Pajero onde estavam o prefeito e seu amigo Sérgio Gomes da Silva, rendeu-os, seqüestrou Celso Daniel e o abandonou no dia seguinte numa estrada, já sem vida e com marcas de tortura. Não é possível afirmar com certeza se houve um mandante. Suspeito de ser o arquiteto da ação, o empresário Sérgio Gomes da Silva teve prisão preventiva decretada e passou sete meses na cadeia. Foi solto em julho do ano passado por falta de provas. Já sobre o segundo crime, a propina que o PT cobrava de empresas que prestavam serviços à prefeitura, não há dúvidas. É um dos poucos casos de corrupção no Brasil que têm extrato bancário.

Os depoimentos na CPI e as investigações sobre a morte do legista fornecem uma grande oportunidade para esclarecer os mistérios relacionados à morte do prefeito e aprofundar a única certeza – a de que havia roubalheira em benefício do PT em sua administração. Enquanto não se souber exatamente o que aconteceu, o espectro de Celso Daniel continuará a assombrar o PT – assim como aqueles vilões de filmes de terror que morrem no final, mas ressuscitam no episódio seguinte provocando sustos ainda maiores.

 

A CERTEZA

Corrupção com recibo e extrato bancário

Examinando o caso Celso Daniel com óculos de hoje, pode-se dizer que a cidade de Santo André foi a precursora do mensalão. Na tarde do dia 24 de janeiro de 2002, cinco dias depois do assassinato do prefeito, a empresária Rosângela Gabrilli, dona de uma empresa de ônibus em Santo André, procurou o Ministério Público para fazer uma denúncia grave. Segundo ela, os donos de companhias rodoviárias da cidade eram obrigados a contribuir para uma caixinha do PT. O valor do mensalão seria proporcional à quantidade de ônibus que cada empresário possuía, à razão de 550 reais por veículo. A própria Rosângela, dona da Expresso Guarará, pagava 40.000 reais todos os meses. A empresária apontou três responsáveis pelo esquema de cobrança. Sérgio Gomes da Silva, o "Sombra", melhor amigo do prefeito. Klinger Luiz de Oliveira Sousa, ex-secretário de Serviços Municipais de Santo André. E Ronan Maria Pinto, sócio de Sérgio em três empresas, ele próprio um dos maiores concessionários do setor de transporte público na cidade. Em plena efervescência da campanha eleitoral, a denúncia foi desqualificada por vários petistas, que viram na atitude de Rosângela indícios de manobra eleitoreira. Mesmo assim, abriu-se uma CPI em Santo André e o Ministério Público foi chamado a investigar o caso.

A prova de que Rosângela falava a verdade veio em abril de 2003. A empresária encontrou no fundo de uma gaveta da Expresso Guarará, de sua propriedade, um fax datado de 30 de dezembro de 1998, em que se informava qual seria o valor da caixinha do mês – 100.000 reais – e qual parte caberia a cada uma das sete empresas de ônibus na cidade. No mesmo fax havia o número da conta bancária de Sérgio Gomes da Silva. Com base no fax, o Ministério Público pediu a quebra do sigilo bancário de Sérgio e constatou que havia depósitos na conta dele, na mesma data, exatamente nos valores discriminados no fax. Segundo Rosângela, a caixinha costumava ser paga em dinheiro vivo, transportado em envelopes – naquele tempo os corruptos ainda não se deixavam apanhar de cuecas recheadas. Em ocasiões especiais, o depósito era feito diretamente na conta de Sérgio Gomes da Silva. Trinta de dezembro, véspera de feriado e dia de folga dos office-boys das empresas de ônibus, era uma dessas ocasiões. Os extratos bancários levantados pelo Ministério Público mostraram que o dinheiro tinha entrada e saída. No histórico da conta de Sérgio, próximo às datas em que ele recebeu o dinheiro, havia vários depósitos em favor de amigos, entre eles Ivone de Santana, a namorada de Celso Daniel na época de seu assassinato. "Era um empréstimo pessoal, Sérgio e eu somos amigos há anos", disse Ivone a VEJA. Assim, a partir da única certeza do caso – a de que havia caixinha político-eleitoral em Santo André – surge o primeiro mistério: quem estava por trás do esquema? E quem se beneficiou dele?

 

I MISTÉRIO  

Quem chefiava a quadrilha que arrecadava dinheiro para o PT em Santo André?

 

Fotos Ricardo Trida/Futura Press
Ronan Maria Pinto, Sérgio Gomes da Silva, o "Sombra", e Klinger Luiz de Oliveira Sousa: testemunhas os apontam como coordenadores do esquema de corrupção em Santo André. Klinger e Ronan escaparam por pouco da cadeia. Sérgio ficou sete meses preso

Durante muito tempo se difundiu a versão de que Celso Daniel foi assassinado porque tentou acabar com o esquema de propina de Santo André. A mais recente virada no caso, em setembro deste ano, trouxe um forte indício de que o prefeito sabia do esquema e se beneficiava dele. O Ministério Público de Santo André localizou uma diarista que prestava serviços ao casal Ivone de Santana e Celso Daniel. Ela concordou em falar desde que seu nome não aparecesse nos autos. Certa vez, durante uma faxina no apartamento, a diarista encontrou três sacos de dinheiro escondidos sob um lençol. No dia seguinte, os sacos não estavam mais lá. "Isso constitui para nós uma prova cabal de que Celso não apenas sabia do esquema como participava dele", diz o promotor Roberto Wider Filho, de Santo André, que investiga o caso desde o princípio. "Até então, o que sabíamos através de depoimentos de amigos e parentes era que o prefeito talvez conhecesse o esquema, mas o tolerava desde que o dinheiro fosse todo para o partido. E teria ficado chateado ao perceber que alguns correligionários se locupletavam."

Fica ainda mais difícil acreditar que Celso Daniel não participava quando se levam em consideração os estreitos laços de amizade entre os petistas de Santo André no tempo da administração do prefeito. Eram como uma quadrilha, no bom sentido do termo – o do poema de Carlos Drummond de Andrade que evoca uma dança. Miriam que amava Celso que amava Ivone que se casou com Michel mas que também amava Celso. Ronan que era sócio de Sérgio que era amigo de Celso que preparava Klinger para ser seu sucessor. Celso que é irmão de Bruno que é casado com Marilena que é amiga de Sérgio.

Ao contrário do que ocorre no poema, os petistas da quadrilha de Santo André têm nome e sobrenome. Miriam Belchior, a primeira mulher do prefeito, Ivone de Santana, sua última namorada, e os irmãos Michel e Maurício Mindrisz, amigos de toda a vida de Celso, se conheceram na adolescência. Eram da turma que freqüentava o boulevard Oliveira Lima, no centro de Santo André, um dos primeiros calçadões do Brasil. Chegaram a cunhar o verbo "boulevardiar", que significava paquerar no calçadão. Celso começou a namorar Miriam Belchior na juventude. Na mesma ocasião, outra moça, Ivone de Santana, se apaixonou por ele. Celso namorava firme uma, mas não desprezava a outra. Quando ele finalmente se decidiu por Miriam, Ivone se casou com Michel Mindrisz, um dos melhores amigos de Celso e filho da dona da loja de roupas onde ela trabalhava. Foram felizes, mas Ivone continuou vendo Celso durante o casamento. Chegou a ter uma filha desse caso extraconjugal, a qual Michel acabou assumindo. Depois que Celso se separou de Miriam, ele e Ivone, já bem mais maduros, voltaram a ter um relacionamento. Essa contradança amorosa é relevante para o caso por uma razão: toda a turma do Boulevard – Ivone, Miriam, Maurício e Michel – ocupou cargos em um ou mais mandatos de Celso Daniel à frente da prefeitura de Santo André (foram três no total, o último inconcluso). O fato ilustra uma característica marcante do estilo administrativo do prefeito. Ele gostava de se cercar de amigos íntimos, de extrema confiança.

O empresário Sérgio Gomes da Silva, por exemplo, era de máxima confiança. Foi apresentado ao prefeito por Marilena, mulher de seu irmão mais novo, Bruno Daniel. Corria o ano de 1988, Celso estava em campanha para prefeito e queria ter um esquema de segurança. Sérgio era versado em artes marciais, conhecia muita gente na área e montou uma equipe para o candidato. Eleito, Celso lhe deu a coordenação da guarda municipal e da defesa civil. Sérgio foi ganhando a intimidade do chefe e cresceu dentro da prefeitura. Logo estava pilotando os chamados "projetos matriciais", iniciativas que envolviam diferentes secretarias. Isso significa que era poderosíssimo, pois estava encarregado de cobrar os secretários, motivo pelo qual todos o chamavam de "Sérgio Chefe". Marilena, a mulher de Bruno, que havia sido nomeada secretária de Educação, largou a Pasta após uma divergência com o prefeito. O relacionamento entre os dois irmãos, que eram muito próximos, ficou estremecido. Sérgio de certa maneira ocupou o espaço vago, tanto que muitos dos amigos comuns a ambos definem a relação dos dois como fraterna. Ele ficou tão íntimo da turma do Boulevard que se tornou sócio de Celso, Maurício Mindrisz e Miriam Belchior numa empresa de consultoria. Esteve próximo às atividades políticas de Celso até 1996, quando fez um novo amigo, Ronan Maria Pinto, e entrou em sociedade com ele em três empresas de ônibus. Além disso, Sérgio tornou-se consultor de Ronan na área de coleta de lixo, atividade pela qual os petistas nutrem uma curiosa atração. Juntos, ambos prestaram vários serviços à prefeitura de Santo André durante os mandatos de Celso Daniel.

O Ministério Público de Santo André detectou irregularidades em vários desses contratos, e os investiga até hoje. Os rendimentos declarados de Sérgio Gomes se multiplicaram por dez entre 1996 e 2000. Enquanto o "Sombra" enriquecia, Celso Daniel também fazia um novo amigo. Arquiteto nascido no Maranhão, Klinger Luiz de Oliveira Sousa foi aluno do prefeito, que também era professor, na pós-graduação da Fundação Getulio Vargas de São Paulo. Acabou guindado ao cargo de secretário de Administração quando o prefeito se elegeu para o seu segundo mandato, em 1996. Corriam rumores de que Celso preparava Klinger para ser seu sucessor.

Não há indícios de rachas na "Turma do Boulevard" que sustentem a tese de que o prefeito, indignado com o esquema de corrupção, tenha brigado com seus até então fiéis colaboradores. Se alguma divergência houve, acabou em esfiha. Em janeiro de 2002, uma semana antes do crime bárbaro, Celso resolveu ir ao restaurante Arabia, em São Paulo, para comemorar sua indicação a coordenador da campanha eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva, que considerava o ápice de sua carreira política. Convidou três companheiros petistas para o evento. O primeiro era Sérgio Gomes da Silva. O segundo, Klinger Luiz de Oliveira Sousa. E o terceiro... Bem, o terceiro será revelado no próximo capítulo.

 

II MISTÉRIO  

Qual a real participação de José Dirceu
e Gilberto Carvalho no esquema de
corrupção da prefeitura petista?

 

Fotos Dida Sampaio/AE, Caio Guatelli/AE e Celso Junior/AE
Luiz Eduardo Greenhalgh irritou a família de Celso Daniel ao insistir na versão de crime comum. Gilberto Carvalho (ao centro) e José Dirceu foram apontados pelos irmãos do prefeito assassinado como integrantes do esquema de corrupção

No dia 24 de maio de 2002, apresentou-se ao Ministério Público de Santo André uma testemunha que pediu para não ser identificada. Ela aparece nos autos do processo com o nome de "Testemunha Número Um". Diante de quatro promotores, o depoente, que declarou ser pessoa próxima do prefeito, disse ter conhecimento do esquema de caixinha denunciado por Rosângela Gabrilli. Endossou o nome dos coordenadores: Sérgio, Klinger e Ronan. A partir daí, fez acréscimos bombásticos. Segundo a Testemunha Número Um, Gilberto Carvalho, um dos homens mais próximos de Lula na burocracia petista, sabia do esquema. Mais do que isso. Gilberto Carvalho teria dito à Testemunha Número Um que ele próprio teria sido por diversas vezes o portador do dinheiro da caixinha, que entregava pessoalmente ao presidente do partido, o ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu.

Um mês depois, em junho, a Testemunha Número Um assumiu sua identidade. Tratava-se de João Francisco Daniel, o irmão mais velho do prefeito. Na ocasião, vários cardeais petistas – entre eles o deputado Luiz Eduardo Greenhalgh, escalado pelo partido para acompanhar o caso – vieram a público desqualificar João Francisco, dizendo que ele estava a serviço da "direita" e que era brigado com o irmão. Contra esse argumento, o irmão do prefeito lembrou a VEJA que, meses antes do seqüestro, ele próprio, João Francisco, Celso e respectivas mulheres haviam viajado juntos para a Itália, de férias. Recentemente, João Francisco contou a mesma história envolvendo Gilberto Carvalho e José Dirceu à CPI dos Bingos. Em outro depoimento à mesma CPI, o irmão mais novo de Celso, Bruno, endossou a versão. De acordo com João Francisco, Miriam Belchior, a primeira mulher do prefeito, também sabia da história em seus detalhes.

Ex-seminarista e ligado à esquerda católica, Gilberto Carvalho foi um dos fundadores do PT no Paraná. Quando saiu de seu estado natal, ocupou várias funções na burocracia do partido, em geral diretamente ligadas a Luiz Inácio Lula da Silva. Por essa razão, quando Celso Daniel o nomeou secretário de Comunicação de sua prefeitura, ele foi visto pela turma do Boulevard como um enviado especial do próprio Lula ao ABC paulista. Era atípico Celso escolher colaboradores fora do círculo de seus amigos mais próximos. Gilberto, no entanto, se adaptou bem. Tornou-se próximo não apenas de Celso Daniel, mas também de Sérgio Gomes da Silva e Klinger Luiz de Oliveira Sousa, que os irmãos de Celso apontam como os chefões da corrupção. Naquela noite no restaurante Arabia em que Celso comemorava sua ascensão a coordenador de campanha no PT, Sérgio, Klinger e Gilberto Carvalho brindaram com ele. "Acho uma injustiça dizerem que Celso brigou comigo porque soube de algum suposto esquema. Éramos muito próximos até o fim da vida, e se alguém saiu extremamente prejudicado dessa história fui eu", disse Klinger a VEJA. A reportagem da revista tentou confirmar o encontro no restaurante com Gilberto Carvalho, mas ele não retornou as ligações. Além dele, Miriam Belchior e José Dirceu também foram procurados. Informados do assunto que seria tratado, não atenderam à reportagem de VEJA.

 

III MISTÉRIO  

Por que o Ministério Público e a
Polícia Civil chegaram a conclusões
tão diferentes sobre o caso?

 

Fotos Agliberto Lima/AE, Marcelo Casal Jr/ABR e Ed Ferreira/AE
Miriam Belchior (à esquerda), ex-mulher de Celso Daniel, também sabia da roubalheira em Santo André, de acordo com os dois irmãos do prefeito, o professor Bruno Daniel (ao centro) e o médico oftalmologista João Francisco Daniel (à direita)

Bruno Daniel é o irmão mais novo de Celso. Eles freqüentaram simultaneamente a Escola de Engenharia Mauá, em São Bernardo do Campo, iniciaram juntos a militância no PT (o mais velho dos irmãos, João Francisco, preferia ficar longe de política) e iam constantemente ao Estádio do Pacaembu, em São Paulo, para assistir a jogos do Corinthians. Sempre foram muito próximos. O assassinato de Celso traumatizou Bruno. Entre as mágoas que guarda do episódio, uma se destaca: a que nutre pelo deputado petista Luiz Eduardo Greenhalgh, o qual teria tentado abafar, a todo custo, os rumores de que o crime contra Celso Daniel teria motivação política. É importante lembrar aqui que, no enterro do prefeito, o então candidato a presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez um discurso emocionado, em que disse: "Esse crime não foi coincidência. Tem gente graúda por trás disso, e nós vamos descobrir quem é". Dois meses depois, ninguém mais no PT queria saber de apurar o crime. Greenhalgh, destacado pelo partido para acompanhar o caso, tentava convencer a família a não aprofundar as investigações. "Para mim houve um acordo entre PT e PSDB nas vésperas das eleições. Certamente o PT temia que a apuração sobre a morte do meu irmão revelasse mais corrupção, e acertou com o PSDB um abafamento do caso, em troca de silêncio sobre possíveis falcatruas dos tucanos. O Greenhalgh, uma pessoa em que eu confiava, comprou essa versão e tentou vendê-la a nós", disse Bruno a VEJA.

A teoria do irmão de Celso ganhou corpo por causa do próprio silêncio da Polícia Civil do Estado de São Paulo, que durante muito tempo se negou a dar entrevistas sobre o caso. A verdade, no entanto, é que a investigação foi, sim, tratada como prioridade dentro da instituição. Para apurar o assassinato de Celso Daniel, o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa destacou um de seus quadros mais experientes, o delegado Armando de Oliveira Costa Filho. Ele entrou no caso em 21 de janeiro, dois dias depois da morte do prefeito. Formou uma força-tarefa com 33 investigadores, seis delegados e cinco escrivães. Sua primeira suspeita era um homicídio encomendado. Mirando nessa direção, enviou detetives a Santo André e às faculdades nas quais o prefeito dava aulas, a Fundação Getulio Vargas e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Não achou nenhum inimigo que pudesse ser considerado um suspeito forte. Os boatos de que havia sido crime passional também foram descartados por falta de fundamentação. Havia indícios de que o prefeito fosse homossexual e mantivesse um relacionamento com Sérgio Gomes da Silva. O delegado Armando recebeu a informação, vinda do médico-legista, de que Celso era realmente bissexual, mas considerou esse dado irrelevante pelo fato de o prefeito ter uma namorada firme – Ivone – e por nada apontar para outro relacionamento estável, com homem ou com mulher, no mesmo período.

A hipótese de homicídio encomendado começou a ser descartada em 7 de fevereiro de 2002, quando a polícia prendeu José Édison, um dos bandidos da quadrilha que seqüestrou Celso. Em seu depoimento, ele contou que a intenção era seqüestrar um comerciante da Ceasa paulistana. Seguiram-no na noite do dia 18, mas o perderam de vista. Para não voltarem para casa de mãos abanando – haviam roubado dois carros para o crime –, eles resolveram escolher outra vítima aleatoriamente. Foi quando passou a vistosa Mitsubishi Pajero a bordo da qual Sérgio Gomes da Silva e Celso Daniel voltavam a Santo André depois de um jantar no restaurante Rubaiyat, em São Paulo. Os bandidos renderam o carro. José Édison contou à polícia que, pelo biotipo de Sérgio Gomes, pensaram que se tratasse do motorista. No banco do carona, Celso Daniel, alto e branco, parecia um empresário. Partiram, assim, para o seqüestro que acabou desembocando na morte do prefeito. O bandido afirmou que ele e seu bando resolveram assassinar Celso Daniel depois de o identificarem como prefeito de Santo André. Ficaram com medo da perseguição implacável que sofreriam por parte da polícia. O delegado Armando e sua equipe prenderam os outros integrantes da quadrilha da favela Pantanal, que confirmaram a história. "Perícia, impressões digitais, tudo batia. Depois veio o Ministério Público, que não entende nada de investigação, e disse que o trabalho era malfeito. Isso é um absurdo", queixou-se o delegado a VEJA.

O caso foi reaberto por pressão dos irmãos de Celso Daniel, que conseguiram que o Ministério Público de Santo André, encarregado da questão da corrupção na prefeitura, passasse a investigar também a morte. Como ocorreu no que se refere à Polícia Civil, foi destacada uma elite de procuradores: Roberto Wieder, Amaro Thomé e José Reinaldo Carneiro, familiarizados com investigações complicadas de desvio de dinheiro. O ponto de partida deles era justamente o laudo do legista Carlos Delmonte Printes, que acusava a tortura. Havia manchas vermelhas em várias partes do corpo do prefeito assassinado, provavelmente produzidas por agressões com o cano do revólver. Havia também uma contusão no crânio. O cadáver de Celso Daniel fora encontrado atravessado na estrada. O prefeito vestia apenas uma cueca, colocada ao contrário. No código dos bandidos, isso poderia significar traição. Essa interpretação dos promotores foi reforçada pelo fato de Celso Daniel ter levado um tiro no rosto, o que poderia ser indício de vingança – matar alguém desfigurando-lhe a fisionomia é sinal de humilhação no mundo do crime organizado.

Os promotores passaram a suspeitar que podia haver algo mais do que crime comum. A possível conexão entre a corrupção na prefeitura petista e o assassinato, no entanto, só apareceria mais tarde. "Demos uma virada no caso, e a polícia se negou a investigar para não admitir que fizera um péssimo trabalho", acusou o promotor José Reinaldo Carneiro – o mesmo que, recentemente, denunciou o escândalo de arbitragem no Campeonato Brasileiro de Futebol. A virada seria o depoimento de um outro bandido, Ailton Alves Feitosa. Ele é até hoje o maior indício de que as duas tramas da história policial – assassinato e corrupção – podem estar de alguma forma interligadas.

 

IV MISTÉRIO  

Existe alguma relação entre as
sete mortes ligadas ao caso?

 

L. C. Leite/AE
Heitor Hui/AE

O legista Delmonte: seus superiores o proibiram de dar entrevistas quando ele começou a defender a tese de que Celso Daniel havia sido torturado

Celso Daniel: revelações de sua diarista provocaram uma virada no caso. De acordo com ela, o prefeito morto guardava sacos de dinheiro debaixo de um lençol

Na sexta-feira passada, a Polícia Civil e o Ministério Público finalmente concordaram em alguma coisa relacionada ao caso Celso Daniel. Ambos trabalhavam com a hipótese de que o legista Carlos Delmonte Printes havia se suicidado. Na véspera, a polícia defendia a tese de morte natural por ataque cardíaco ou problemas pulmonares. A perícia do Instituto Médico Legal, no entanto, descartou causas naturais. As vísceras de Delmonte, assim, foram encaminhadas para um exame toxicológico. De acordo com a família, o legista andava deprimido com a morte de um filho e a doença grave de outro. Mais um indício de suicídio foi a carta que o médico deixou com um terceiro filho, na qual especificava detalhes sobre o próprio enterro e autópsia e listava números de contas bancárias e respectivas senhas. Na tarde de quarta-feira, o legista foi encontrado morto no chão de seu escritório no bairro paulistano de Vila Clementino. Na ocasião, ele estava de cuecas.

A morte de Delmonte é a sétima relacionada ao caso. Dos outros seis mortos, pelo menos três poderiam dar uma virada nas investigações. O mais importante era o bandido Dionísio Aquino Severo, um dos seqüestradores de Celso Daniel. Na manhã de 17 de janeiro de 2002, dois dias antes da ação criminosa, Dionísio e mais dois amigos protagonizaram uma fuga espetacular. Eles tomavam sol no pátio do presídio Parada Neto, em Guarulhos, quando um helicóptero apareceu e os resgatou. Só não foi mais cinematográfico porque os guardas do presídio não reagiram. Estavam, como se diz no jargão dos bandidos, com "os fuzis entupidos" – ou seja, haviam recebido propina para facilitar a fuga. Quem teria pago? Teria sido Dionísio, libertado propositalmente para que seqüestrasse Celso Daniel? Pelo menos uma pessoa acreditava nessa hipótese: o delegado Romeu Tuma Júnior, titular na ocasião da delegacia seccional de Taboão da Serra, sob cuja jurisdição estava a cidade de Juquitiba, município onde o corpo foi encontrado. Sondagens feitas por seus investigadores davam conta de que o helicóptero utilizado na fuga havia sido alugado na região do ABC. Quando passou a investigar a conexão, Tuma começou a receber ameaças de morte. Os recados vinham da parte do próprio Dionísio. Três meses mais tarde, o bandido seria preso em Maceió, onde tentava assaltar um banco. No dia 8 de abril foi levado ao delegado Tuma. Disse que sabia muito sobre o caso, mas só falaria se fosse possível negociar "condições especiais". Não teve tempo para isso. Foi assassinado dois dias depois dentro do presídio do Belém, em São Paulo. Dois dos outros mortos guardavam relação com Dionísio. O primeiro era o bandido Sérgio "Orelha", que escondera Dionísio logo depois da fuga do presídio. O outro, Otávio Mercier, investigador da Polícia Civil que procurava Dionísio depois da fuga e teria chegado a fazer um contato com ele por telefone. Ambos morreram assassinados a tiros.

Antônio Palácio de Oliveira, garçom que serviu o último jantar de Celso Daniel no restaurante Rubaiyat, morreu quando, perseguido por dois homens, espatifou sua motocicleta num poste. Paulo Henrique Brito, testemunha que poderia ajudar a esclarecer as circunstâncias do acidente com o garçom, foi assassinado com um tiro vinte dias depois. A penúltima morte relacionada ao caso foi a de Iran Moraes Redua, o agente funerário que reconheceu o corpo de Celso Daniel, jogado numa estrada de terra em Juquitiba. Redua foi assassinado a tiros em novembro de 2004.

É duvidoso que o legista Carlos Delmonte Printes soubesse algo além do que já havia dito – ele recentemente participou de dois programas de entrevistas da Rede Globo. Em agosto deste ano, Printes deu um depoimento a Roberto Wider e Amaro Thomé Filho, promotores de Santo André envolvidos com o caso, no qual disse que passou dois anos proibido de falar sobre o assunto pelo superintendente da Polícia Científica de São Paulo, Celso Perioli, e pelo diretor do Instituto Médico Legal, José Jarjura. No ano passado, em plena vigência da mordaça, VEJA conseguiu falar com Carlos Delmonte Printes numa entrevista à qual compareceram outros integrantes da Polícia Civil. Sob a vigilância de seus superiores, Delmonte deu uma versão intermediária sobre o caso. Celso Daniel havia sido torturado, sim, mas isso não significava necessariamente que se tratava de crime político, pois existem bandidos comuns que matam com requintes de sadismo. A revelação mais impressionante que fez na ocasião – e que repetiu no depoimento de agosto aos promotores de Santo André – foi a de que o corpo de Celso Daniel, a pedido dele, havia sido embalsamado. A intenção era que o cadáver pudesse ser exumado no futuro. A ação esteve a cargo da equipe do Aeroporto de Cumbica, especializada em embalsamamento de corpos para traslados internacionais. Carlos Delmonte Printes acreditava que muita coisa ainda viria a ser descoberta sobre o caso, e um novo exame do cadáver poderia fornecer revelações adicionais (o legista confirmou também que Celso morrera no sábado 19, e não no domingo 20, como está no túmulo do prefeito reproduzido na capa de VEJA).

Sete mortes depois, resta como testemunha mais importante Aílton Alves Feitosa, um dos companheiros de Dionísio Aquino Severo na fuga do presídio Parada Neto.

 

V MISTÉRIO  

Qual a relação entre o assassinato e
o esquema de propina em Santo André?

Quando convidou Dionísio para jogar bola no pátio da cadeia num dia de céu azul, Feitosa ouviu do amigo: "Hoje o dia está propício para voar". Achou que o colega andava meio estranho e foi para o futebol. Minutos mais tarde, os dois times ficaram estarrecidos ao ver um helicóptero pousar no pátio da cadeia e resgatar Dionísio. Ele próprio, Feitosa, ficou mais surpreso ainda – de forma agradável – quando o companheiro gritou seu nome, chamando-o para fugir com ele. Foi essa a história que ele contou ao Ministério Público de Santo André em setembro de 2002. O mais grave de seu depoimento viria depois. Fugido da cadeia, Feitosa ficou escondido na casa de dona Dete, tia de Dionísio, e teria ouvido conversas dele com seus comparsas no seqüestro de Celso Daniel. Eles falavam que estava tudo pronto para levar o "peixe grande". Que o empresário que iria acompanhá-lo sabia de todo o plano e iria facilitar a ação. Que a perseguição, as colisões e os disparos na Pajero seriam apenas para "fazer a cena" – afinal, todos sabiam que o carro era blindado e ninguém em seu interior corria riscos. Que a morte do "peixe grande" seria uma "queima de arquivo". Que Dionísio havia sido resgatado do presídio para realizar uma série de operações criminosas, e que a principal delas seria justamente esse assassinato. Era fácil legendar a história. O empresário seria Sérgio Gomes da Silva, e o "peixe grande", Celso Daniel. Depoimentos posteriores de parentes e amigos de Dionísio e Feitosa confirmaram vários pontos da versão do segundo. Num dos depoimentos, Dionísio aparece como mentor da quadrilha, à qual ele se referia carinhosamente como "timinho de Diadema". Num depoimento, a mulher de Dionísio cita o "Sombra" como financiador da operação.

Foi com base principalmente nesse depoimento que Sérgio Gomes da Silva teve sua prisão preventiva decretada em dezembro de 2003, na condição de elemento de alta periculosidade. Klinger e Ronan escaparam por pouco. Quase foram condenados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em junho do ano passado. De três desembargadores, dois votaram a favor da prisão e um pediu vistas ao processo. Na segunda votação, um dos desembargadores mudou de idéia e eles se salvaram. Em julho do ano passado, Sérgio Gomes da Silva também foi solto. O juiz achou que não havia provas suficientes de que ele fosse o mandante do assassinato. De lá para cá, os personagens do caso Celso Daniel continuam levando vida normal. Quase todos eles, como José Dirceu, Gilberto Carvalho, Miriam Belchior, Maurício Mindrisz, Ronan Maria Pinto, Klinger Luiz de Oliveira Sousa e o próprio Sérgio Gomes da Silva, continuam participando de governos do PT, próximos ao PT ou fazendo negócios com o PT. Na semana passada, um relatório do Conselho de Defesa da Pessoa Humana, órgão ligado ao Ministério da Justiça, recomendou que se reabrisse o caso Celso Daniel. O parecer provocou ira no governo.

No Cemitério da Saudade, em Santo André, jaz um corpo embalsamado.