domingo, outubro 16, 2005

Corrupção e ética universal RUBENS RICUPERO

FSP

No meio da multidão em Jericó, o pequeno chefe dos coletores de impostos subiu a um sicômoro para avistar o profeta. Ao chegar perto, Jesus disse: "Zaqueu, desce depressa pois devo ficar em tua casa". Começaram os murmúrios contra o profeta que se hospedara na casa de um pecador. Zaqueu, contudo, declarou: "Senhor, eis que dou aos pobres metade de meus bens e, se defraudei a alguém, restituo-lhe o quádruplo". Disse-lhe Jesus: "Hoje, a salvação entrou nesta casa, porque ele também é filho de Abraão. Com efeito, o Filho do Homem veio salvar o que estava perdido".
Em poucas linhas, Lucas narra a maravilhosa história da conversão de representante do símbolo da corrupção. Fosse no Brasil, a história se referiria a um deputado federal. Não sei se entre nós haveria o dano, o que menos se viu até agora, sem falar de restituição ou de fazer doação aos pobres.
O episódio evangélico chama a atenção para aspecto ausente da informação excessiva que nos ameaça afogar em oceano de irrelevância. Faz falta reflexão sobre o sentido profundo da tragédia da vida política brasileira. Escolhi palavra que a alguns parecerá exagerada. Tragédia evoca catarse, que o dicionário define como purificação, limpeza, "o efeito moral e purificador da tragédia clássica, cujas situações dramáticas, de extrema intensidade... trazem à tona os sentimentos de terror... dos espectadores, proporcionando-lhes o alívio, ou purgação, desses sentimentos". Será que a descrição corresponde ao que sentem os telespectadores ou leitores das denúncias e acareações das CPIs?
Não sei, pois o que vemos mais se assemelha às vezes à comédia pastelão ou a uma peça repetitiva com canastrões de telenovelas. Não obstante, o roteiro deveria obrigar-nos a pensar. Perguntando-nos, por exemplo, a quem ofendem e prejudicam os corruptos e corruptores? Pode soar óbvio, mas no Brasil declarações do presidente e do vice, que juraram fazer respeitar a Constituição e as leis, dão a impressão de que violá-las não faz mal a ninguém. A idéia de que um crime disseminado perde a importância e não estigmatiza os que o praticam deixaria pálido de espanto e indignação a ingleses e americanos acostumados a crer que o "rule of law", o Estado de Direito, é a condição da vida civilizada.
Civilização vem de "civitas", cidade, a mesma raiz de civil, cidadão, e quer dizer a "vida que se vive de acordo com as leis da cidade", isto é, o estado das leis, em oposição ao estado de natureza, a barbárie. Quem atenta contra a lei da cidade passa a inimigo de todos os cidadãos. Para Sócrates, a vida nobre e reta, a vida "boa", de qualidade, era a participação na vida pública, no governo da cidade, polis em grego, daí, política. Trata-se, porém, de governo segundo o bem comum, o interesse coletivo, a virtude. Dizia Montesquieu que a ruína da República começa pela corrupção do seu princípio, que é a virtude.
Além de ser obstáculo ao desenvolvimento econômico, a corrupção é atentado contra a justiça. Venha de onde vier, o dinheiro do caixa dois e dos mensalões é recurso subtraído do povo, por desvio de verbas, sobrefaturamento de obras, taxas extorquidas de fornecedores ou suborno para obtenção de contratos em prejuízo dos honestos. Em qualquer caso, todos pagam e, em primeiro lugar, os pobres e vulneráveis. São eles, os que têm de levantar de madrugada para andar duas horas de ônibus para chegar a um trabalho penoso, os que lutam para sobreviver com decência e dignidade, os verdadeiros humilhados e ofendidos nessa história sórdida de um partido nascido do subúrbio, que se volta contra a sua gente, a gente humilde da canção que dava vontade de chorar a Vinícius, a Chico Buarque, a todos nós.
Zaqueu decidiu dar metade dos bens aos pobres e restituir quatro vezes o que acaso fraudara a outros. E os nossos, o que se deveria fazer com o dinheiro de que criminosamente se apropriaram? É um pouco sobre isso tudo que queremos refletir no próximo 24, às 19h30, no auditório do Colégio São Bento. O Instituto Jacques Maritain convidou o deputado Carlos Sampaio, protagonista da investigação no Congresso, e o professor Miguel Reale Junior, expoente da reação jurídica à crise, para conduzirem um diálogo público com frei Carlos Josaphat OP, o grande teólogo dominicano brasileiro, que por 30 anos foi professor de teologia da Universidade de Friburgo, na Suíça. Não temos intenção de fazer pregação sectária, confessional, de atacar ou defender o governo. Nem nos situamos na perspectiva de uma religião ou de um partido. Nosso desejo é partir de uma ética universal, humanista, válida para todo ser humano que quer ter vida honesta e promover, se possível, essa catarse, a purificação da consciência por meio do diálogo e da reflexão, que até agora não conseguimos obter nem do drama no Congresso nem das pífias e lamentáveis observações de nossos dirigentes.