"No momento , preocupamo-nos com uma questão de imensa importância para o partido, agora e no futuro: como o culto da pessoa de Stálin cresceu gradualmente (...) e tornou-se a fonte de uma série de extremamente graves perversões dos princípios do partido, da democracia do partido, da legalidade revolucionária? (...) As características negativas de Stálin (...) transformaram-se nos últimos anos em grave abuso de poder (...). Stálin preparou o partido e a NKVD para o uso do terror de massas."
Quando Nikita Kruschev pronunciou essas palavras, no seu discurso secreto de 25 de fevereiro de 1956, perante o 20º Congresso do Partido Comunista soviético, Stálin estava morto havia três anos. O novo líder comunista, que consolidava o seu poder, fornecia uma narrativa destinada a explicar o "terror de massas" na pátria do socialismo. Ela não tocava nos fundamentos do sistema de poder totalitário: toda a culpa recaía nas "características negativas" do Guia Genial dos Povos e no erro de percurso do partido, misteriosamente contaminado pelo "culto à personalidade" de Stálin.
O discurso secreto logo vazou para a imprensa ocidental, e os "companheiros de viagem", como os comunistas batizaram os intelectuais simpatizantes, passaram a reproduzir a nova narrativa oficial com o mesmo zelo com que, antes, difundiam a "verdade" de Stálin. Muitos nem sequer se envergonhavam de persistir na prática stalinista de qualificar como "traidores a serviço da CIA" os socialistas, trotskistas e anarquistas que sempre denunciaram a natureza do sistema soviético. Esses intelectuais foram, mais do que o próprio Stálin, responsáveis pelo apodrecimento da esquerda tradicional, que se tornou irreformável. Eles interpretaram a queda do Muro de Berlim como uma derrota da humanidade, e seus herdeiros atuais justificam os fuzilamentos sumários de Fidel Castro e mal escondem o fascínio que sentem pelos atos bárbaros do terror jihadista.
Os hábitos intelectuais da esquerda tradicional manifestam-se no Brasil do governo Lula. Os rótulos de "elitistas" ou "colonizados" servem para estigmatizar os críticos do Fome Zero e as críticas à política externa, mesmo quando voltadas para apontar as violações de direitos humanos no Haiti. Uma notável acadêmica chegou a escrever que Fernando Gabeira poderia expressar "desacordos pontuais" com o governo, mas manchava sua biografia ao oferecer um diagnóstico geral da camarilha que ocupou o Planalto e o PT para promover a pilhagem sistemática do Estado. No PT, a chapa encabeçada por Valter Pomar contesta a direção, mas não deixa de repetir, quase literalmente, a velha litania stalinista sobre os "esquerdistas" que estariam a serviço da direita. Um cientista político fabricou a tese da "conspiração da direita", que seria, no fundo, um "complô da mídia", inventando um artefato ideológico cuja função é suprimir a crítica ao governo e nutrir as manifestações oficialistas da CUT, da UNE e do MST.
Até a filósofa Marilena Chaui, colocada diante do colapso político e moral do governo Lula, renunciou à crítica histórica. Seguindo o cânone de Kruschev, ela enxerga erros acidentais de percurso do governo, mas não os relaciona a nenhum interesse, projeto ou visão de mundo e atribui a tragédia a uma "armadilha tucana", cancelando a condição de sujeitos políticos dos seus companheiros que estão no poder. A interrupção da crítica, mais até do que a falência do governo, condena o PT a repetir a trajetória descrita no passado pelos partidos comunistas.
quinta-feira, setembro 01, 2005
DEMÉTRIO MAGNOLI A crítica interrompida
FOLHA DE S PAULO