A operação "Deus Nos Acuda", que só pela denominação revelava todo seu potencial de exploração fisiológica pelos chamados "aliados inorgânicos", deu com os burros n'água, marcando mais um fracasso da coordenação política do governo e esvaziando as burras do Tesouro, numa tentativa, tão vergonhosa quanto inútil, de mudar, ao peso da verba oficial e do verbo ameaçador, a decisão de quase cem deputados e senadores.
A CPI dos Correios começa assim, com o governo no córner político, e revela a incapacidade intrínseca do PT de montar um governo de coalizão no qual a lógica política prevaleça sobre os interesses imediatos de grupos.
Essa crise foi anunciada logo na primeira reunião do núcleo duro do novo governo com seus ministros políticos, na qual foram definidos os critérios de relacionamento com os partidos da base aliada. Diante da sugestão de aproveitar a força dos votos e da imagem de Lula para estabelecer um estilo de negociação que se diferenciasse do governo anterior, considerado fisiológico, impôs-se o ponto de vista do chefe da Casa Civil, José Dirceu, então todo-poderoso coordenador político do novo governo.
Ficou decidido usar o Orçamento e as nomeações para atrair para a base governista o maior número de deputados e senadores, escolher alguns partidos para servirem de "barriga de aluguel" para esvaziar a oposição, e armar um rolo compressor no Congresso, e mesmo dentro do PT.
É verdade que a tática funcionou com eficiência, até estourar o caso de Waldomiro Diniz, aquele assessor do Gabinete Civil flagrado negociando propina com o banqueiro de jogo Carlinhos Cachoeira. A linha dura do governo enquadrou dissidências e encaminhou votações polêmicas de reformas necessárias como a da Previdência, com um nível de adesão bastante firme.
Quebrado o encanto, no entanto, o relacionamento do governo com o Congresso desandou, passando a ficar explícita a falta de homogeneidade ideológica da base aliada, prevalecendo sempre e cada vez mais o fisiologismo puro e simples.
O sociólogo e cientista político Hamilton Garcia tem uma explicação para essa crise política, que, segundo ele, deriva de dois fenômenos: o caráter de "frente política de massas" do PT, admitido pelo próprio José Dirceu, e seu programa mudancista. O caráter "frentista" do PT, analisa Garcia, "de certa forma desabilita-o a montar uma verdadeira 'frente externa' permanente, como havia se desenhado com a 'Frente Brasil Popular' de 1989 e o 'Governo Paralelo' de 1990, pois a luta interna do PT já tem a complexidade deste desafio". Mas ele acha que a crise política atual "não é necessariamente um mau indício para a democracia".
Na verdade, considera que a crise, ao contrário, "é um indício de que o PT não se descaracterizou como querem seus opositores, e ainda é capaz de mexer com a nossa institucionalidade tradicionalista-fisiológica. Se a crise se resolver pela radicalização-moralização democrática, então será benfazeja", analisa ele.
É o que pensa a esquerda petista, um grupo de deputados que pode chegar a 20 em determinados momentos, e que no caso da CPI dos Correios reduziu-se a 11, depois que seis deles retiraram suas assinaturas pressionados pelo Palácio do Planalto. Como teoricamente faltaram por volta de dez deputados retirarem suas assinaturas para que a CPI fosse abortada, os deputados da esquerda do PT que mantiveram suas assinaturas já estão sendo chamados de "braço tucano infiltrado no PT", como acusou o ex-líder do governo deputado Professor Luizinho. Já existe até mesmo um movimento dentro do PT para negar a legenda do partido no próximo ano aos deputados considerados dissidentes.
O grupo, que se reúne na segunda-feira, no Rio, no auditório da Universidade Candido Mendes, no campus do Centro, para um debate público, acredita que age em coerência com a história do partido "e dos limites intransponíveis da fronteira ética, que aliança com Roberto Jefferson e que tais ameaçam", como define o deputado Chico Alencar.
Pegando a palavra do próprio presidente Lula, que na viagem ao Oriente declarou que "uma cidadania ativa e participante é a melhor maneira de garantir a transparência do Estado, de combater a corrupção, de assegurar o bom uso dos recursos públicos", a esquerda vai propor um "choque ético" que certamente seria bem recebido pela "cidadania ativa" de que fala Lula, mas quase certamente não corresponde ao que o Palácio do Planalto espera de seus aliados.
Entre as medidas propostas, estão o afastamento de ministros investigados por ilícitos, como Romero Jucá, da Previdência, e Henrique Meirelles, do Banco Central; um trabalho sereno e firme na CPI, "demolindo o palanquismo e o embarreiramento à apuração séria", e repúdio ao que definem como "clientelismo explícito", como o do presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, que exige a diretoria da Petrobras "que fura poço". O deputado Chico Alencar, que tem base política no Rio, defende que os trabalhadores da Petrobras, caso essa barganha se efetive, "deveriam repudiar esta ofensa à empresa até com greve".
A esquerda do PT quer também novas regras para preenchimento de cargos em comissão, "reservando um percentual para servidores de carreira, de reputação ilibada"; empenho na reforma política, especialmente com o financiamento público e exclusivo de campanha; insistência na reforma do Judiciário, sobretudo no que tange à agilidade processual; ampliação de pessoal e equipamentos da Controladoria Geral da União, e continuidade e aprofundamento das importantes operações da Polícia Federal.
o globo
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