A incontinência verbal do presidente Lula, a serviço de uma trôpega tentativa de revide a críticas de seu antecessor, aproxima o País do umbral de uma crise política de proporções amedrontadoras.
Está evidente que as relações entre o governo e a oposição vêm se deteriorando sem cessar desde que, há um ano, o Planalto sufocou uma proposta legítima de abertura de CPI para investigar a conduta do assessor parlamentar do Planalto Waldomiro Diniz, o amigo e protegido do ministro José Dirceu. A seguir, a campanha para as eleições municipais acirrou o confronto entre o partido do presidente e o do anterior - assim como a troca de farpas entre eles próprios.
Os resultados do pleito deram alento à hipótese de que a reeleição de Lula, apesar de sua inabalável popularidade, pode não ser tão líquida e certa como se prognosticava quando começou o "espetáculo do crescimento". Ao mesmo tempo, os surtos de autoritarismo petista, traduzidos, entre outras coisas, em projetos de lei como o da criação do Conselho Federal de Jornalismo, tornaram cada vez mais estridente o debate político.
Nesse clima de crispação, Fernando Henrique instou os tucanos a explorar a fundo os numerosos flancos expostos de um governo que, a rigor, só tem a mostrar a continuidade da política econômica herdada e a torrencial verborréia presidencial, cuja "quase-lógica", como já se disse, e cujo triunfalismo caem bem aos ouvidos do público menos preparado, por mais que estropie a bela flor do Lácio.
A sucessão na Câmara dos Deputados, enfim, deu ensejo a Fernando Henrique para enfatizar o que, de resto, já estava à vista de todos - a sistemática dilapidação do sistema partidário representado no Congresso a que o presidente e os operadores palacianos se entregaram desde a primeira hora. O objetivo último do tira-e-põe dos políticos de uma legenda para outra é montar, com os recursos da fisiologia, uma indecorosa falange partidária para a reeleição, indo do PC do B ao PP.
A reeleição é o tema único e indisfarçável da discurseira de Lula, com um auto-endeusamento que o leva a se declarar o demiurgo de "uma oportunidade histórica, que há muitos e muitos anos (o Brasil) não teve". Mas, se ele estivesse realmente seguro da vitória em 2006, talvez não chegasse a esse preocupante estado de excitação mental - e talvez não tivesse passado dos limites na sua cotidiana verborragia, que a colunista Dora Kramer definiu como "a banalização do descalabro".
Foi, no entanto, o que fez, com assustadora leviandade, ao relatar um diálogo, no início do governo, com um "alto companheiro" (sic) que lhe teria dito: "Presidente, a nossa instituição está quebrada, estamos falidos. O processo de corrupção que aconteceu, antes de nós, foi muito grande." E Lula teria respondido: "Se tudo isso que você está me dizendo é verdade, você só tem o direito de dizer para mim. Para fora, feche a boca." O presidente da República, em suma, declarou ter abafado uma denúncia de pesada corrupção na gestão Fernando Henrique.
Não bastasse essa confissão de prevaricação, Lula ainda faltou com a verdade. Ficou claro, pelo contexto da sua fala, que a instituição é o BNDES e o interlocutor era o seu então dirigente Carlos Lessa, que, por acaso, passou grande parte do tempo da sua gestão insultando o ex-presidente. Era de esperar, portanto, que a sua obsessão o fizesse corroborar a história com que Lula pretendeu dar o troco a FH. Mas o que se ouviu de Lessa foi um inequívoco desmentido: "O presidente exagerou um pouco. Nunca falei que havia corrupção, nem que o BNDES estava em situação pré-falimentar."
De seu lado e no seu papel, o PSDB pretende pedir a instauração de um processo contra Lula por crime de responsabilidade. Eis aí os contornos da crise produzida pela volúpia de poder do presidente e por sua intemperança no manejo das palavras. É de tirar o sono pensar que se está apenas em fevereiro de 2005 - a longos 20 meses das próximas eleições.
Anteontem, Lula disse também que "não vamos permitir que, por atitudes impensadas e irresponsáveis, a gente jogue a esperança desse povo no limbo...". E mais: "Vamos fazer as coisas como têm de ser feitas: com responsabilidade." Se ele não começar a praticar o que prega, em vez de fazer o contrário, sabe-se lá onde poderá parar a esperança dos brasileiros na manutenção da estabilidade político-institucional, agora sob ameaça da ambição, do despreparo e do ressentimento de quem deveria ser o primeiro a velar por ela.
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