EFEITO RETARDADO
À primeira vista, as seguidas elevações da taxa de juros básica não estão produzindo os efeitos esperados na redução do ritmo de crescimento e na tentativa de fazer a inflação deste ano convergir para o objetivo fixado pelo Banco Central de 5,1%. Alguns analistas consideram que a principal causa do fenômeno residiria nas mudanças ocorridas no mercado de crédito, sobretudo o destinado ao consumidor.
É verdade que houve inovações relevantes no setor de crédito. É clara a expansão dos empréstimos com desconto em folha de pagamento, e as grandes redes de distribuição, apesar da elevação da taxa básica, aumentaram os volumes e ampliaram os prazos de financiamento. Além disso, o processo de securitização de recebíveis, ou seja, a operação que propicia a antecipação de recursos que serão recebidos no futuro, tem ampliado a liqüidez de empresas.
Por fim, o próprio sistema bancário vem elevando os recursos e os prazos dos empréstimos, motivado por uma maior confiança na solvência dos devedores. De acordo com o BC, houve, em 2004, uma expansão do volume de operações de crédito de 28,9% para pessoas físicas e de 27,1% para pessoas jurídicas.
Essa maior oferta de dinheiro, na realidade auspiciosa para o dinamismo econômico, pode realmente criar alguma resistência à eficácia da política de elevação da taxa de juros. Não parece, todavia, ser esse o problema a ser enfrentado. A resistência à queda da inflação está claramente associada à transmissão para o presente de efeitos inflacionários de eventos passados -como a desvalorização cambial, a elevação das cotações de commodities e os aumentos de preços administrados e indexados.
A eficácia da política monetária está sendo afetada principalmente pelo fato de que as variações dos preços livres, que representam apenas 30% do IPCA -o índice que baliza as metas de inflação-, devem permanecer próximas a zero ou mesmo apresentar deflação para compensar o movimento de alta dos preços administrados e indexados. Com isso, a política monetária precisa ser excessivamente restritiva caso o BC leve às últimas conseqüências, como tem feito, a sua obsessão em cumprir metas demasiado ambiciosas, que exigem sacrifícios irracionais à luz dos já mencionados mecanismos de formação de preços da economia.
É preciso reconhecer, ademais, que o tratamento para reduzir rapidamente uma inflação de dois para um dígito deve ser diferente daquele que visa a levá-la, a seguir, para patamares em torno de 4% a 5% -processo mais lento, que pode transcorrer em períodos maiores de tempo e em sintonia com as exigências do crescimento econômico. Não é razoável que em nome de alguns míseros pontos percentuais a serem cortados da inflação no intervalo de um ano-calendário o BC leve os juros às alturas e, com isso, puna o setor produtivo, reduza as perspectivas de expansão e aumente a dívida pública.
Há, ademais, uma defasagem entre o movimento de alta dos juros e seus impactos sobre a atividade econômica e os preços. Portanto, embora possam tardar, não há dúvida de que os efeitos deletérios do aperto monetário irão aparecer.
ÁGUAS DO SÃO FRANCISCO
O governo pretende iniciar em breve o projeto de transposição de águas do rio São Francisco, que, idealizado pela primeira vez em 1847, ganhou desde então várias versões. A atual prevê que uma fração, segundo o Ministério da Integração Nacional correspondente a 1% do volume de água que o rio despeja no mar, seja desviada por meio de um sistema de 700 km de canais para beneficiar 12 milhões de pessoas no semi-árido do Nordeste.
A obra, que se anuncia custosa, exigindo investimentos de cerca de R$ 4,5 bilhões, tem gerado ruidosas controvérsias entre técnicos, políticos e representantes do governo. O presidente Lula, que não lançou até aqui nenhum projeto de porte comparável, diz encarar a obra como um "legado pessoal à região".
A transposição não tem como objetivo solucionar o histórico problema da seca ou da inexistência de água em volume suficiente para irrigar os cinco Estados a serem beneficiados -Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Alagoas. A proposta visa perenizar alguns rios, manter o estoque de oito açudes e permitir que as populações da região disponham de água para consumo próprio e para o uso de rebanhos.
Há pontos ainda um tanto obscuros na proposta. O principal deles está na gestão do sistema, que é complexo e custoso. São nove estações para o bombeamento por eletricidade da água a uma altura de 160 metros num dos canais e de 500 metros no outro. O governo afirma ter entregue a questão à Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco), mas o fez, ao que se sabe, sem a assinatura prévia de contratos para a partilha dos gastos entre os Estados, municípios ou particulares beneficiados -correndo o risco de que a conta fique mesmo com a União.
Há ainda uma questão técnica, levantada sobretudo pelos governos de Minas Gerais e da Bahia. Mesmo com uma captação mínima de 26 m3 por segundo, a transposição afetaria a piscosidade e a vazão de um rio que já está a exigir, antes de mais nada, investimentos para melhorar suas condições. O governo responde acenando com um plano de revitalização no qual já estaria investindo R$ 127 milhões.
Existe, além disso, a questão do impacto ambiental. O governo publicou editais de concorrência para os 14 lotes em que os canais foram divididos antes de um aval preliminar do Ibama. É uma prática duvidosa, pela qual a administração, na tentativa de criar fatos consumados, atropela regras que ela própria estabeleceu.
Cabe lembrar, por fim, a motivação recôndita de uma parcela significativa de adversários da obra. Ela centraliza recursos que o governo poderia pulverizar para atender outras demandas regionais. A transposição secará fontes financeiras, o que evidentemente gera e gerará protestos.
Não há dúvida de que o objetivo de levar água ao semi-árido é louvável. Porém ainda resta ao governo dissipar as dúvidas e demonstrar que não há riscos de o país receber mais um "elefante branco" semelhante àqueles que, há algumas décadas, herdou do regime militar sob a forma de obras faraônicas inconclusas.
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