quarta-feira, fevereiro 23, 2005
Folha de S.Paulo - Elio Gaspari: Lula é o seu próprio dragão - 23/02/2005
Lula deveria dar uma trégua aos seus ouvintes. Na condição de presidente, suas falas têm um valor pedagógico que independe tanto de sua vontade como de sua sintaxe. Ele vem fazendo mau uso dessa atribuição. Agora acusou "alguns conservadores da área madeireira" pela anarquia e pelas delinqüências da floresta paraense.
O companheiro acha que "conservador" é sinônimo de bandido? Para mencionar apenas políticos que já saíram da fotografia, foram conservadores o inglês Winston Churchill, o americano Ronald Reagan e o alemão Helmut Kohl. O primeiro salvou a civilização ocidental do nazi-fascismo, o segundo devolveu a confiança ao Império Americano e o terceiro unificou a Alemanha. Conservador é uma expressão política muito mais séria do que "petista". Conhecem-se as propostas e os compromissos dos conservadores do século 20 e pode-se especular quais idéias defenderão no 21. Ganha uma viagem a Cuba no AeroLula quem for capaz de fazer isso com o PT Federal.
Lula mostra gosto na construção de um dilema político no qual encarna um são Jorge que enfrenta dragões conservadores. É empulhação da boa, porque se baseia na satanização da outra parte. Está fazendo com os outros o que fizeram com ele. Se essas construções alopradas assombrassem discursos improvisados, seria possível dar um desconto. Os "conservadores da área madeireira" foram uma produção do "Café com o Presidente". Trata-se de uma conversa gravada, da qual podem-se retirar impropriedades e cacos de vidro.
Lula consumiu 25 anos do seu tempo (e do alheio) caçando o dragão do governo. Tendo chegado ao Planalto, estilhaçou o bestiário. Ora ataca a ordem mundial, ora refere-se aos séculos de injustiça que antecederam sua chegada à manjedoura do palácio. O bicho faz-lhe uma enorme falta. Ou Lula se livra desse dragão ou, numa tarde de Brasília, olhando para a própria sombra, descobrirá que o dragão é ele.
No mesmo discurso dos madeireiros conservadores ele anunciou: "Atingimos a maioridade no controle da nossa Amazônia e no controle das nossas florestas". Enquanto a fantasia medieval serve para a sua autoglorificação, tudo bem. É um modelo cansativo, mas não faz mal a ninguém. Quem teve oito anos de FFHH não haverá de se incomodar com vaidades presidenciais. Quando a fantasia isola um pedaço da sociedade (a elite, os conservadores, os ricos, os convidados de Ronaldinho), o jogo fica mais pesado. Há nele um cheiro de Hugo Chávez, mas, ainda assim, é direito de Lula jogá-lo. O que não se pode fazer é ofender o conhecimento. Como ele mesmo gosta de dizer, neste-país-ninguém-tem-o-direito de confundir bandidos com conservadores.
Do último "Café com o Presidente", resta um mistério. Lula disse mais o seguinte: "E esses, que se precipitaram e mataram pessoas, terão que ser punidos. O lugar que está reservado a esses cidadãos, tanto aos assassinos quanto aos mandantes, chama-se cadeia". O que vem a ser uma precipitação na Terra do Meio? Como se pode dizer que o pistoleiro Rayfran das Neves Sales precipitou-se ao dar seis tiros na irmã Dorothy Stang? É coisa que só Lula sabe.
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