PLANO DIFÍCIL DE CUMPRIR NO ESGOTO |
O Globo - 23/12/2013 |
Em 43% dos lares, não há saneamento. Após 6 anos, governo lança programa com meta irreal
A
empregada doméstica Reny Nunes de Melo, que mora no assentamento
Fercal, a 26 quilômetros do centro de Brasília, vive um drama que afeta
43% dos domicílios brasileiros: a falta de redes de esgoto. Em períodos
de chuva, principalmente, as fossas dos vizinhos transbordam e o esgoto
corre em volta da sua casa. Depois de ficar na gaveta por seis anos, o
governo lançou, no início deste mês, o Plano Nacional de Saneamento
Básico (Plansab) com o objetivo de resolver o problema da falta de
acesso a água e esgoto tratados no país. Mas, na avaliação de
especialistas, a proposta é irreal e cheia de falhas, o que ameaça o
sucesso da meta de universalização dos serviços em 20 anos.
No
caso do esgoto, o Plansab promete elevar a cobertura para 92% da
população até 2033. Hoje, apenas 57% dos domicílios brasileiros são
ligados à rede de esgoto, mas este número inclui as fossas sépticas. No
acesso à água tratada, a meta é estender o acesso a 99% da população, em
áreas urbanas e rurais, com aporte de R$ 508,5 bilhões. Porém, o plano
não informa como o país dará um salto no nível de execução dos
investimentos no setor — tradicionalmente baixo. E está baseado em
cenários econômicos bem mais otimistas que o atual, com crescimento
elevado e inflação baixa.
O
investimento total do Plansab para o saneamento foi projetado num
cenário em que o Brasil chegará a 2030 com taxa de crescimento de 4% ao
ano e inflação de 3,5%. Porém, este ano o Brasil deve crescer só 2,3% e a
inflação deve ser de 5,8%.
No
cenário traçado pelo governo, os aportes federais pulariam de R$ 7,9
bilhões em 2011 para R$ 13,5 bilhões em 2014 e 2015 e R$ 17,5 bilhões em
2017, totalizando R$ 300 bilhões até o fim do plano. O restante seria
complementado por estados, municípios, operadores privados e
financiamentos externos.
Meta exige ampliar aportes em 60%
Nos
dois cenários mais pessimistas para a economia, o crescimento é
estimado em 3% ao ano e a inflação, em 6% ao ano, com investimentos
federais de R$ 220 bilhões entre 2014 e 2033. O documento admite que,
neste caso, haveria necessidade de aperto monetário para controlar a
inflação e dificuldades de implementação de políticas públicas, com
retração dos investimentos, mas mantém inalteradas as metas de
universalização dos serviços.
—
O Plansab é mais um protocolo de intenções do que um planejamento de
longo prazo que se propõe, de fato, a atingir a meta de universalizar os
serviços. É uma carta de intenção, porque está muito distante da
realidade — disse o presidente da Associação Brasileira das Empresas
Estaduais de Saneamento (Aesbe), José Carlos Barbosa.
De
acordo com o Plansab, nos próximos cinco anos, o país terá de investir
R$ 87,5 bilhões em saneamento, uma média anual de R$ 17,5 bilhões. Entre
2003 e 2011, foram contratados R$ 79,879 bilhões, mas desembolsados R$
43,448 bilhões, o que equivale a R$ 4,8 bilhões por ano. Mesmo quando se
analisam os projetos incluídos no PAC, que têm prioridade, a situação
não é diferente: dos R$ 40 bilhões anunciados para o setor, entre 2007 e
2010, o Ministério das Cidades selecionou 1.700 projetos, num total de
R$ 35,6 bilhões, mas foram executados somente R$ 9,8 bilhões, contando
recursos só da União (média de execução de 31%).
Para
especialistas, olhando a evolução da cobertura dos serviços de
tratamento de água e esgoto e a média de investimento anual, nos últimos
dez anos (entre 2002 e 2012), fica claro que as metas do Plansab não
são factíveis. Nesse período, o índice de cobertura do serviço de água
tratada subiu 2,4% e foram investidos R$ 28 bilhões, ou seja, foram
gastos R$ 12 bilhões para cada ponto percentual a mais na cobertura. O
índice está hoje em 84% e, para chegar a uma cobertura de 99%, por
exemplo, será preciso investir por ano mais de três vezes o valor médio
aplicado na última década, algo em torno de R$ 9 bilhões. Mantido o
ritmo atual, o país chegaria a 2030 com cobertura de 88%.
No
caso do esgoto, que hoje tem cobertura de 57%, a situação é ainda mais
complicada: nos últimos dez anos foram investidos R$ 33 bilhões, ou
seja, foram gastos em média R$ 3 bilhões por ano. Para alcançar a meta
pretendida, seria preciso ampliar o investimento em mais de 60%. Mantido
o ritmo atual, o Brasil chegará a uma cobertura de 76% em 2030. Segundo
cálculos da Aesbe, nesse ritmo a universalização levaria 57 anos.
—
O cheiro é insuportável e não tem o que fazer. Tem que esperar secar —
reclama Reny Melo, que precisa conviver com o esgoto a céu aberto.
Vizinha
de Reny no assentamento Fercal, em Brasília, a dona de casa Edna Aquino
de Sousa contou que um caminhão jogou brita e pedras em cima da fossa
para abafar o mau cheiro. Ela disse que as crianças adoecem com
frequência e atribui o problema à falta de rede de esgoto:
— Os meninos adoecem muito. Têm diarreia e virose. Acho que é o esgoto.
Outra
crítica ao Plansab é a falta de prioridade para ações destinadas ao
tratamento do esgoto, um problema grave no Brasil e de solução onerosa.
Estima-se que mais da metade do esgoto produzido no país é jogada
diretamente em rios e no mar, poluindo o ambiente e mananciais.
—
Isso agrava a escassez hídrica e encarece a conta de água para os
consumidores — disse o economista Marcos Thadeu Abicalil, especialista
sênior de Água e Saneamento do Banco Mundial.
—
O plano apresenta medidas muito amplas e genéricas no sentido de
orientar a efetiva execução dos investimentos necessários à
universalização do saneamento no Brasil — observa o economista Gesner
Oliveira, sócio da Go Associados e especialista na área.
Para ministério, cenário é factível
O
Ministério das Cidades rebateu, em nota, as críticas ao Plansab: “No
entendimento técnico do Ministério das Cidades, o plano é real, os
cenários trazem uma visão factível e fortalecem o plano. Ademais, o
monitoramento e avaliação do plano será permanente e sistemático para
que possam ser identificadas possíveis distanciamentos da realidade
prevista, de forma a se fazer as correções necessárias".
Segundo
o presidente da Aesbe, o governo precisa deixar claro quanto a União
vai aplicar no setor, a fundo perdido, para ajudar estados onde a
situação é mais grave e nos quais não há capacidade de endividamento,
sobretudo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
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