domingo, outubro 14, 2012

Na China ninguém se chama João - FERREIRA GULLAR


FOLHA DE SP - 14/10


Eu sempre soube que a China era um país "sui generis". Mas que, em pleno século 18, no final dele, ainda se considerava um Império Celestial, o ápice da civilização humana e que, fora de lá, tudo o que havia no mundo eram bárbaros, isso eu não sabia. Vim a saber, agora, ao ler o livro "Sobre a China", de Henry Kissinger, que me foi emprestado por Adriano Lemos, meu vizinho e meu amigo.

Kissinger, que foi assessor de segurança dos presidentes americanos Richard Nixon e Gerald Ford, esteve na China mais de 50 vezes --inicialmente para restabelecer as relações dos Estados Unidos com a República Popular da China e assim buscar um modo de reduzir as tensões da Guerra Fria e minar a aliança dos chineses com os soviéticos.

Mas essa é a parte da história que, bem ou mal, se conhece. A parte que pouca gente conhece é a outra, a da China milenar, cuja origem se perde no tempo e nas lendas, como os mitos. Há quem diga que a civilização chinesa não teve começo, sempre existiu.

A verdade, porém, é que a China sempre esteve ali, ao leste da Ásia, fazendo fronteira com a Rússia e a Índia, debruçada sobre o Pacífico. Pelo menos, isso era o que os ingleses sabiam quando, em 1793, enviaram para lá o lorde George Macartney, chefiando uma missão cujo propósito era estabelecer relações diplomáticas e comerciais. Não deu certo.

E não podia dar, uma vez que a China mantinha-se numa espécie de irrealidade ou autismo, que pouco tinha a ver com o mundo real, enquanto o Ocidente entrara na era industrial, da máquina a vapor e da economia de mercado.

Enquanto isso, a nobreza chinesa dedicava-se a refletir sobre os ensinamentos de Confúcio e a cultivar a poesia e a caligrafia. Estava certa de que a China era o centro do mundo, o Império do Meio, governado por um Imperador Celestial, a que todos os seres humanos deviam reverência.

Em face disso, questões comerciais e diplomáticas não tinham maior importância. Foi o que constataram, perplexos, Macartney e sua comitiva.

A primeira surpresa dos "bárbaros de cabelos vermelhos", como eles chamavam os ingleses, a caminho de Jehol, a capital de verão a noroeste de Pequim, foram os letreiros que proclamavam: "O embaixador inglês levando tributo ao Imperador da China".

Ou seja, os presentes que ele trazia para o imperador não eram uma gentileza, mas uma obrigação. Além disso, as maravilhas tecnológicas da Europa não causaram qualquer impressão aos anfitriões, que fingiam não ver nelas nenhuma novidade.

A coisa se complica ainda mais quando a comitiva inglesa se aproximava de Pequim. Os mandarins encarregados de administrar a missão deram início a uma negociação que surpreendeu os visitantes.

A questão era se Macartney iria fazer o "kowtow" diante do imperador. O "kowtow" implicava em que as pessoas, diante do imperador, tinham de fazer genuflexões e prostrações repetidamente, o que o embaixador inglês considerava humilhante para um súdito do rei da Inglaterra.

Queria limitar-se a abaixar-se apoiado em um dos joelhos, como impunha o costume da corte britânica. Os chineses, porém, não aceitavam, de modo que a discussão demorou várias semanas, chegando os mandarins a ameaçar Macartney de voltar para casa de mãos abanando. Depois de muito, admitiram que o embaixador apenas se ajoelhasse, como fazia diante de seu próprio rei.

Um mês e meio depois, Macartney continuava esperando pela audiência com o imperador. Enquanto isso, aconteciam banquetes, entretenimentos e discussões sobre
o protocolo apropriado para a audiência.

Finalmente, Macartney foi convocado às quatro da manhã --conforme conta Kissinger-- a ir a uma tenda muito grande e bela, a fim de ali aguardar sua majestade, que apareceu em cima de um palanquim. Depois de distribuir presentes aos visitantes, o próprio imperador lhes serviu taças de vinho morno. Tudo isso para que, algum tempo depois, Macartney fosse cientificado de que nada do que propusera seria atendido. E, assim, ele voltou para Londres, de mãos abanando.