domingo, abril 15, 2012

Antes da hora - MIRIAM LEITÃO

O GLOBO - 15/04/12



Quantas crianças caberiam sentadas no Maracanã? Adultos seriam 86 mil, antes da reforma, mas as crianças ocupam menos espaço e nas arquibancadas poderiam se apertar. O que vocês acham: 100 mil? 120 mil? Se for isso, nem um Maracanã seria suficiente para pôr sentadas todas as crianças de apenas 5 a 9 anos que trabalham no Brasil. Elas são 123 mil. Na faixa de 10 a 13 anos, precisaríamos de vários estádios porque são 785 mil.

Os dados acima eu ouvi na Organização Internacional do Trabalho (OIT), mas a entidade usa a estatística do IBGE, da última Pnad disponível. Estive num encontro, dias atrás, em São Paulo, com especialistas no assunto. Eles dizem que o número pode ser maior, por pesquisas que fazem, e porque parte desse trabalho se dá dentro de casa, e o domicílio, por lei, é inviolável.

Os números oficiais já são alarmantes o suficiente e mostram a aceitação de uma irracionalidade. Crianças que trabalham se desempenham mal nas escolas ou acabam saindo delas na adolescência. Serão trabalhadores despreparados no futuro. E pior, o país reproduz a cadeia da miséria que quer erradicar. Há pesquisas mostrando que elas terão, ao longo da vida, em média, uma renda menor do que aquelas que fizeram tudo na época certa. Na infância e adolescência: brincar, estudar, praticar esportes, e dar tempo para que o corpo e a mente se formem para a vida adulta saudável e produtiva.

As entidades que se dedicam ao assunto em suas várias formas - trabalho infantil, exploração sexual, envolvimento com tráfico e outros crimes - estão com a sensação de que a sociedade não tem muita sensibilidade para o problema. Acham que persistem mitos, como o de que o trabalho infantil enobrece, ensina, prepara para a vida, forma o caráter. Muitos adultos hoje contam histórias de que começaram a trabalhar cedo. Alguns têm um enredo de superação, mas são incontáveis - porque invisíveis - os casos de fracasso, de pessoas que porque não se educaram, e trabalharam cedo demais, ficaram na miséria e desenvolveram sequelas e limitações incapacitantes.

Renato Mendes, coordenador nacional do Programa Internacional de Erradicação do Trabalho Infantil da OIT, diz que há boas notícias também: o problema vem diminuindo ao longo das últimas duas décadas a ponto de já se poder sonhar com a erradicação, no curto prazo, do trabalho nas faixas de idade menor, como de 5 a 9.

Se forem incluídas outras faixas etárias até os 17 anos são quatro milhões de crianças e adolescentes no trabalho. Em 1992, eram 10 milhões. De 2004 a 2009, houve redução de um milhão de crianças e adolescentes na estatística. Houve uma onda forte de combate, quando foram divulgadas denúncias de trabalho em carvoarias e outros setores insalubres e perigosos. Hoje, a OIT notou que o ritmo de melhora está em queda e o problema começou a ficar invisível para a sociedade.

- É um problema que exige muito das políticas públicas. Se houver mais creches, haverá menos trabalho doméstico. Se houver ensino em tempo integral, o adolescente ficará menos vulnerável a ser recrutado por atividades ilegais. As escolas não estão sendo suficientemente atrativas para manter o estudante, por isso as crianças vão para as escolas quando mais jovens, mas o índice de evasão na adolescência é muito alto. As pessoas que têm ingresso prematuro no mercado de trabalho têm alta taxa de desemprego mais tarde. Muitas estão expostas a atividades perigosas ou proibidas, como o tráfico de drogas e a prostituição - disse Mendes.

Ele acha que o ponto crítico é o de 14 a 17 anos porque há uma tolerância da sociedade e até um incentivo a que isso ocorra. Programas como o do Menor Aprendiz não foram contados na estatística. São regulamentados, têm o horário certo para não impedir a vida educacional, garantias trabalhistas e uma lista das atividades que não podem ser executadas com segurança por menores. Por lei, e por acordo internacional assinado pelo Brasil, existem 94 atividades que não podem ser exercidas por menores, por serem perigosas, insalubres e prejudiciais a pessoas em formação. O que se inclui na estatística de trabalho infantil e de adolescente são as atividades proibidas, criminosas e executadas fora das leis trabalhistas:

- O percentual de crianças e adolescentes com 14 ou 15 anos que trabalhavam diminuiu de 19,9% para 16,1% entre 2004 e 2009. Entretanto, cerca de 1,2 milhão de pessoas nessa faixa etária estavam ocupadas no ano de 2009.

Há diferenciações a serem feitas, entre trabalho leve em casa, de ajuda aos pais, que não prejudicará o adolescente, e o trabalho excessivo, até de crianças, determinado pela miséria da família, ou emprego doméstico de menor. Existem 182 mil adolescentes de 16 e 17 anos no Brasil em trabalho doméstico sem carteira. Trabalhando nas casas das famílias. São principalmente do sexo feminino e estão expostas a "esforços físicos intensos, isolamento, abuso físico, psicológico e sexual" que comprometem seu desenvolvimento social e psicológico.

Há aberrações criminosas, como o recrutamento dos meninos pelo tráfico, e das meninas pelas redes de prostituição. Há muito que o governo, as empresas, a sociedade podem fazer contra esse mal. O primeiro passo é entender que o problema existe, é complexo, e não se deixar envolver pelos mitos que cercam o trabalho infantil como meritório. Um país não combate aquilo que não enxerga como distorção ou crime.