domingo, março 11, 2012

Vem aí o Estatuto da Palavra - JOÃO UBALDO RIBEIRO

O Estado de S.Paulo - 11/03/12


Para mim, é sinal de atraso, mas acho que sou minoria. Estamos
atravessando um interessante processo sociopolítico, em que o
comportamento pessoal e particular é cada vez mais controlado, com a
nobre finalidade de nos proteger, geralmente de nós mesmos. Já
imaginei várias possíveis consequências disso, inclusive a criação das
figuras da ortocópula e da cacocópula. Não, o Estado não instalará
câmeras de tevê nas alcovas, para monitorar a intimidade dos casais.
Só creio que isso pudesse acontecer, ainda que muito remotamente, em
São Paulo, onde hoje é bem mais fácil ser assaltante do que fumante.
Se o assaltante estiver fumando, duvido que assalte qualquer coisa em
Congonhas, por exemplo, porque, assim que passar por baixo da
marquise, um ou dois policiais o pegarão. Já assalto simples, sem
cigarro, é outra coisa.

Não haverá necessidade da monitoração, a não ser por ordem judicial. O
Estado definiria uma cópula otimizada, numa escala, vamos dizer, de um
a cinco. Nessa faixa, teríamos a ortocópula. Passando de cinco, já se
começaria a pisar o arriscado terreno da cacocópula. A iniciativa da
ação estatal seria nos mesmos moldes da lei da palmada. O cônjuge
atingido poderia denunciar o autor da cacocópula, ou isso poderia
caber a quem quer que tivesse condição de levantar suspeitas, tais
como vizinhos e parentes. Se o casal vizinho tem uma trilha sonora
exuberante durante suas conjunções carnais, aludindo, em voz audível
através de um copo na parede, a práticas consideradas inaceitáveis
pelos padrões oficiais, o longo braço da lei pode alcançá-lo. Mesmo
que tanto ela quanto ele garantam que fazem aquilo somente entre os
dois e gostam desse jeito, serão classificados como anormais e levados
a tratamento psiquiátrico. Não se obtendo êxito, paciência. Compete ao
Estado zelar pelo bem deles e, portanto, o divórcio será obrigatório,
podendo ambos inscrever-se no programa governamental "Refaça Sua
Vida", que permitirá novo casamento aos que comprovarem ter abandonado
atos sexuais ilícitos. Os filhos estarão bem entregues a parentes e,
na falta destes, a alguma das exemplares instituições que o Estado
mantém para a guarda e educação de menores desamparados.

Agora há novamente paladinos da sociedade perfeita, o que lá seja
isso, que querem censurar dicionários. De vez em quando, aparece um
desses. Censurar a lexicografia é uma curiosa inovação. Dicionário é
um trabalho lexicográfico, não uma peça normativa. O lexicógrafo não
concorda ou discorda do uso de uma palavra ou expressão qualquer.
Obedecendo a critérios tão objetivos e neutros quanto possível,
constata o uso dessa palavra ou expressão e tem a obrigação de
registrá-la. Eliminar do dicionário uma palavra lexicograficamente
legítima não só é uma violência despótica, como uma inutilidade, pois
a palavra sobreviverá, se tiver funcionalidade na língua, para que
segmento seja.

Não se pode legislar o funcionamento da língua. O que se pode, no
máximo, é regular a chamada norma culta, que poderia ter qualquer
outro nome, porque é destinada apenas a manter um pouco da
estabilidade da comunicação necessária à sociedade, desde o convívio
interpessoal aos documentos de uso comum, da propaganda às leis. Se
não fosse assim, dentro de pouco tempo a comunicação verbal seria
quase impossível. De resto, a língua é viva e livre e ninguém manda
nela, nem mesmo as ditaduras. E não insulta ninguém, depende para isso
de seus usuários, que criam o que é considerado ofensa.

Mas os usuários são renitentes, de forma que, como no caso da cópula,
isso tem que ser regulado, não é possível permitir que o dicionário
registre termos que poderiam ofender algum indivíduo ou categoria.
Acho que tem muita limpeza a ser feita e agora mesmo me ocorrem
cretino, imbecil, idiota, boçal e outras palavras muito usadas para
insultos, que, ainda por cima, são empregadas erroneamente, pois
sabe-se atualmente que o boçal não tem culpa de sua boçalidade. Há
muita gente que acha que se trata de um triste problema genético e
todo boçal é uma vítima que, assim como o bandido, foi marginalizada
(ou excluída, que está mais na moda) e sofreu bullying na infância.

Urge também o banimento de palavras que agravem povos irmãos, mesmo
que hoje seus países não existam mais politicamente, como beócios e
capadócios. Os já citados cretinos são outro caso deplorável, pois,
para grande vergonha nossa, a palavra vem do francês crétin, a qual,
por sua vez, vejam como o mundo dá voltas - se originou de chrétien,
ou seja, cristão. Patenteia-se aí um claro insulto a toda a
cristandade e cretino merece dupla proibição. Baiano burro (aliás,
mentalmente prejudicado, para não ofender o burro e incutir nas
crianças desprezo por um animal tão útil à humanidade) nasce morto,
bem sei, mas não se fazem mais baianos como antigamente e não duvido
que surja um grupo na Bahia, empenhado em abolir termos e expressões
como "baianada" e "gelo de baiano". E certamente apoiarão seus irmãos
paulistas na justa revolta destes, ao serem informados de que lombo de
carne de boi é chamado na Bahia de "paulista" e que muitos baianos, a
cada dia, dizem casualmente "hoje eu vou comer um paulista lá em
casa".

Com os dicionários expurgados, não mais compreenderemos livros
escritos antes desta era. É um preço pequeno a pagar, para nos
livrarmos de uma herança maldita e tornar nossa língua própria para os
anjos que em breve seremos. Aguardo agora normas sobre as artes. As
artes deverão ser obrigadas à imparcialidade e a conceder espaço igual
a todos. Assim, se o vilão de um romance for católico e o mocinho
evangélico, será exigida, concomitantemente, uma versão com os papéis
invertidos. Se um samba falar que "minha nega me traiu", vai ter que
haver outra versão, com a mesma melodia, cantando "minha loura me
chifrou". E por aí vamos, ainda chegamos ao primeiro mundo.