domingo, fevereiro 26, 2012

A torre de Babel - Luiz Paulo Horta

O GLOBO - 26/02/12

Em tempos muito remotos, conta a Bíblia, só havia uma língua na terra.
Escondida na Arca, aquela humanidade primitiva tinha sobrevivido ao
Dilúvio; e agora, confiante em si mesma, queria deixar um sinal da sua
importância. Na terra de Senaar, surgiu a ideia peregrina: "Façamos
para nós uma torre cujo cimo atinja os céus. Tornemos assim célebre o
nosso nome, para que não sejamos dispersos pela face da terra."

O Senhor da Bíblia tomou de mau jeito essa demonstração de orgulho.
Embaralhou as línguas dos construtores, e lá ficou a torre inacabada.

É uma história antiga, contada na clave do mito. Mas será que é só um
mito? Entrevistado pelo GLOBO, o economista André Lara Rezende diz
que, brevemente, teremos de mudar um tipo de pensamento econômico que
só sabe raciocinar com a ideia de crescimento. A terra, sustenta
André, não suporta mais essa ênfase.

Eu, que não sou economista, tenho esse feeling em relação à China: é
crescimento demais, aquilo vai acabar explodindo - na política, ou na
economia, ou na ecologia.

Você me dirá que, sem crescimento, não se diminui a miséria. É um
louvável pensamento humanitário. Estamos impregnados dele até a
medula. Mas seria preciso - é o que sustenta André Lara - encontrar
outras formas de diminuir a miséria. Talvez por uma melhor
distribuição das riquezas acumuladas.

Uma notícia se sucede à outra. Também no GLOBO, leio uma boa
reportagem sobre o uso da água no planeta. A agricultura que se
pratica hoje consome muita água. De novo, a conta não fecha. Países
como o Brasil ainda aparecem relativamente bem nessa foto. Mas o mesmo
já não acontece com a China, e até com os Estados Unidos. Por escassez
de água, eles dependerão cada vez mais de produtos importados do
Brasil. E, para atender a esta sede, vamos pressionar os nossos
próprios recursos, perdendo as vantagens que a natureza nos dá.

E assim se volta à velha história bíblica. Mitos imemoriais, em todas
as culturas humanas, falam da tendência que nós temos de ultrapassar
os limites. Por trás dessa tendência, o vício dos vícios, que é o
orgulho.

Se você não gosta de mitos, vamos às histórias concretas. Lembro a de
Alcibíades, sedutor e corruptor, discípulo de Sócrates. Houve um
momento, na história grega, em que Atenas se equilibrava à frente de
uma coalizão instável. O ciúme das outras cidades provocara a guerra
do Peloponeso; mas um pouco de habilidade teria preservado o status
quo a favor de Atenas. Até que Alcibíades joga o seu peso na balança:
ele queria mais, sempre mais. Arrasta os atenienses para a desastrosa
expedição da Sicília. E assim se perde a guerra, e com ela a mais bela
civilização da Antiguidade.

É fácil empilhar uma história depois da outra - a de Luís XIV, que
desperdiçou um momento privilegiado da história francesa; a de
Guilherme II, que recebeu uma Alemanha unificada das mãos de Bismarck
e a jogou numa aventura militar que, mais adiante, insuflaria o
nacionalismo que deu - você sabe em quem. Tudo isso constituindo o que
Jorge Luís Borges chamaria de "a história universal da infâmia".

Não haveria saída para esse enredo? Uma coleção respeitável de textos
filosóficos ou religiosos procura advertir o ser humano para a
possibilidade sempre presente da arrogância e da loucura. O ideal da
velha Grécia era o "nada em excesso" ("meden agan"). Os gregos batiam
nessa tecla talvez porque soubessem como eles eram dados a excessos.

Mas quem não é? Conta-se de Santo Agostinho que ele teria dito:
"Senhor, fazei-me casto; mas não hoje!"

De todas as civilizações do mundo, nenhuma me parece ter andado tão
próxima do equilíbrio como a da velha China. Basta ler Confúcio, ou
Lao-Tse, e ver o modo como um equilibra e tempera o outro. Nesse velho
modelo, a ideia de evitar os excessos tinha lugar de honra. Como na
"Canção da metade", de Li Mi-an:

"A metade do caminho, para o homem, é o melhor estado, quando o passo
mais lento lhe autoriza a calma. Um amplo mundo jaz entre o céu e a
terra. Viver a meio caminho entre o campo e a cidade, ter granjas a
meio caminho do arroio e da colina, ser metade estudioso e metade
proprietário e metade negociante, e possuir uma casa metade luxuosa e
metade singela ... ter uma esposa que não é nem demasiado simples nem
demasiado sabida ... É mais prudente ébrio quem é metade ébrio, e as
flores meio abertas são mais belas ... como navegam melhor os barcos a
meia vela ...!"

Esta é uma China que parece infinitamente remota. Tão diferente da
China que agora resolveu imitar todas as loucuras do Ocidente.