sexta-feira, fevereiro 24, 2012

Gestão punitiva Merval Pereira

O GLOBO


Raramente, quando se trata de gestão pública, encontra-se quem venha a
público chamar a atenção para possíveis abusos acusatórios do ponto de
vista técnico, e não meramente político.

Em meio a tantas denúncias de corrupção nas diversas áreas da gestão
pública, o advogado Fábio Medina Osório, doutor em Direito
Administrativo pela Universidade Complutense de Madri, mestre em
Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor
referenciado de vários livros sobre improbidade administrativa,
introduz um novo elemento na discussão, aparentemente
contramajoritário, mas no fundo um ponto positivo para o
aperfeiçoamento de nossas instituições.

Ao questionar, em artigos e entrevistas, a pouca discussão que ele
entende haver no Brasil sobre a medição da chamada "gestão punitiva",
apesar de sua brutal interferência na vida de todos os cidadãos e seu
impacto direto nos direitos fundamentais, o advogado Fábio Medina
Osório está ampliando o leque sobre a responsabilização dos erros na
gestão pública.

O professor ressalta que, de um modo ou de outro, se trata de
processos que produzem comoção na grande mídia e reflexos patrimoniais
e morais aos acusados em geral, interferindo em complexas competições
econômicas e, inclusive, políticas.

É necessário, segundo Medina Osório, medir a má gestão punitiva em
nosso país, o que hoje é feito pela imprensa ou pelo volume de
acusações que circulam pela mídia.

Segundo ele, essa é uma forma errada de medir a patologia, porque o
volume de problemas pode aflorar a partir de uma atuação mais
intensiva das instituições ou da própria liberdade de imprensa. Essa,
aliás, é a tese do governo federal, que diz que não foi a corrupção
que aumentou, mas a atuação repressora do Estado.

O advogado Fábio Medina Osório acha que a agenda de infraestrutura,
por exemplo, depende, em grande medida, de segurança jurídica, o que
envolve alguma uniformidade de critérios e certo grau de
plausibilidade nos processos punitivos.

As estatísticas necessárias para medir a eficácia do sistema buscariam
alcançar, fundamentalmente, dados a respeito das decisões judiciais
definitivas envolvendo esses casos, pois os processos garantem
direitos de defesa e podem culminar com o reconhecimento da inocência
dos acusados.

A grande mídia pode medir num plano puramente político, mas não no
plano científico-estatístico, diz Medina Osório.

Um crucial levantamento, portanto, que deveria ser discutido em todos
esses processos é o padrão de eficiência acusatória atual: qual é o
quantitativo de pessoas que são decretadas inocentes ao fim de um
longo e penoso processo por improbidade ou determinados crimes contra
a administração pública no Brasil?

Não raro, ressalta Fábio Medina Osório, debita-se ao Judiciário o tema
da impunidade. Porém, uma pesquisa qualitativa poderia avaliar as
causas reais das absolvições ou da improcedência das acusações ou das
nulidades reconhecidas.

Pode haver falhas estruturais importantes, desde a própria etapa
investigatória ou na formatação das ações. E, é claro, pode haver
lacunas decisórias relevantes.

E esse tipo de levantamento, e discussão crítica, permitiria, diz ele,
o aperfeiçoamento das próprias instituições fiscalizadoras, nos seus
mecanismos repressores, um dado da maior relevância para qualificar
nosso país em vista dos desafios das próximas décadas, que envolvem o
combate à má gestão pública.

O que não se pode admitir, evidentemente, é o uso abusivo, e
indiscriminado, do processo como antecipação da pena, ou até como
penalidade autônoma, turbinado por sua divulgação midiática.

E tampouco se deveria tolerar inversão abusiva ou tumultuária de
papéis entre as instituições. De outro lado, falhas estruturais do
Estado acusador ou investigador não deveriam persistir se por acaso
pudessem ser estancadas.

Um debate mais atualizado, e profundo, sobre o modelo de Estado
acusador é necessário, ressalta Medina Osório.

O processo, e mesmo a investigação, acrescenta o professor, não pode
ser visto como um conjunto de atos desprovido de consequências na vida
das pessoas.

Ao contrário, o processo - e mesmo a investigação - acarreta efeitos
nefastos no patrimônio moral e material de pessoas físicas e
jurídicas.

Esse tipo de aperfeiçoamento tornaria o Estado brasileiro mais
comprometido com a eficiência punitiva, o que revelaria postura
republicana sintonizada tanto com os direitos fundamentais das vítimas
dos atos de corrupção ou má gestão pública, quanto com os dos acusados
em geral.

Uma medição sistemática como a proposta pelo advogado Medina Osório
serviria também, acrescento, para que se tivesse uma ideia clara sobre
como os acusados de desvios administrativos conseguem superar as
denúncias sem às vezes nem mesmo responder a processos.

A desconfiança da maioria é que há nos trâmites legais atalhos e
armadilhas que podem facilitar a vida de um acusado com bons advogados
ou relacionamentos.

O mais comum é que, depois de um escândalo denunciado pelos órgãos de
imprensa, a autoridade acusada deixe o cargo - às vezes até mesmo sob
elogios do mandatário da vez - e nunca mais se fale sobre o processo a
que deveria responder.

Muitas vezes, como ressalta o advogado Fábio Medina Osório, isso se dá
porque as denúncias eram inconsistentes do ponto de vista jurídico,
embora robustas politicamente.

Mas, em outros casos, seria possível constatar que o acusado contou
com a boa vontade de seus pares para escapar do processo a que deveria
ter sido submetido.

Esclarecer esses meandros jurídicos e estabelecer uma sistemática que
pudesse abranger todos os casos de denúncias de má gestão pública
seria fundamental para que a sensação de impunidade não permaneça como
a principal consequência das denúncias.

E também para que as pessoas de bem que ainda se disponham a atuar
como servidores públicos tivessem a proteção do sistema contra
acusações de má-fé.