FOLHA DE SP - 31/07/11
Foi em 1955 que ganhei de Simeão Leal, diretor do Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Cultura, um exemplar do livro "Tudo sobre a Crase". Tomei o ônibus que me levaria à revista Manchete, então na rua Frei Caneca, comecei a ler o livro e, antes de descer, já havia sacado um aforismo: "A crase não foi feita para humilhar ninguém".
Era de fato uma brincadeira com a preocupação dos gramáticos com o uso da crase. Esse primeiro aforismo desencadeou uma série de outros, que publiquei, meses depois, no suplemento literário do Diário de Notícias.
Essa mania de inventar aforismos me veio dos surrealistas, que faziam uso deles com humor e irreverência. Ainda outro dia citei aqui um deles, de autoria de Paul Éluard: "Bate em tua mãe enquanto ela é jovem". E este: "Parents! Raccontez vos rêves à vos enfants!" (Pais! Contem seus sonhos aos seus filhos!").
Naquela tarde, como quase não tinha nada a fazer na Redação da revista, aproveitei para bolar outros aforismos: "Maria, mãe do Divino Cordeiro, craseava mal. E o Divino Cordeiro mesmo não era o que se pode considerar um bamba da crase!".
Escrevia e ria. Borjalo interrompeu a charge que desenhava para vir saber o que me fazia rir tanto. Mostrei-lhe os aforismos e ele, rindo também, chamou o Otto Lara Resende, o diretor da revista. Este, brincalhão como era, pegou o papel de minha mão e leu alto. "Ouve aí, Armando!". Armando Nogueira, redator e repórter de fino humor, logo se juntou ao grupo. Foi uma farra.
Isso só me animou a prosseguir. Depois que o ambiente se acalmou e cada um foi cuidar de seus afazeres, continuei me divertindo: "Quem tem frase de vidro não joga crase na frase do vizinho". E este: "Frase torcida, crase escondida". Mas eis que chegou um texto para copidescar e deixei de lado os aforismos.
Voltei a eles naquela mesma noite, no quarto onde morava, em Copacabana. É que, àquela altura, ganhando melhor, mudara-me da pensão de dona Hortência, no Catete, onde dividia um quarto com Oliveira Bastos e Carlinhos Oliveira.
Sozinho, agora, no sossego daquele aposento silencioso, retomei minha tarefa divertida: "Antes um abscesso no dente que uma crase na consciência". E logo: "Uns craseiam, outros ganham fama". Escrevi mais alguns nos dias que se seguiram até que a fonte secou.
Publiquei-os com uma introdução engraçada, que infelizmente se perdeu. A verdade é que, já na semana seguinte à publicação, os estudantes universitários de Curitiba, que estavam em greve, puseram uma faixa no refeitório com o meu aforismo: "A crase não foi feita para humilhar ninguém". Mas, numa entrevista a um jornal do Recife, um crítico literário o atribuiu a Paulo Mendes Campos. Não gostei mas não dei muita importância, pois, no final das contas - disse a mim mesmo -, o que importa são meus poemas, que até agora ninguém atribuiu a outro poeta.
A vida seguiu até que alguém, escrevendo sobre erros gramaticais, citou o aforismo como sendo de Otto Lara. Comecei a ficar grilado mas me tranquilizei, lembrando que o Otto deve ter me citado e o cara não guardou meu nome. Mas não demorou muito e a autoria do mesmo aforismo foi atribuída a Machado de Assis e em seguida a Rubem Braga.
Este, porém, já a par da confusão que se armara, decidiu esclarecer as coisas: publicou uma crônica afirmando que o verdadeiro autor do aforismo, agora tão citado, era o poeta Ferreira Gullar. Fiquei felicíssimo, telefonei a ele, agradecendo.
Anos depois, veio o golpe militar e a ditadura. As circunstâncias me levaram à clandestinidade e foi no buraco onde me escondera que abri a revista Veja daquela semana e me deparei com um anúncio de página inteira: "A crase não foi feita para humilhar ninguém. Computadores IBM". Era demais. Senti-me mais que nunca explorado pelo imperialismo americano.
Nos últimos anos, talvez porque esqueceram a frase, os equívocos cessaram. Já estava tranquilo, certo de que finalmente me tornara autor do aforismo, quando, faz uns três domingos, surge um artigo em O Globo afirmando que "Carlos Drummond escreveu: ´A crase não foi feita para humilhar ninguém´". Minha esperança é que, no futuro, alguém mal informado atribua a mim, ainda que por equívoco, a autoria do aforismo que é meu.