O Estado de S.Paulo - 17/07/11
O affaire em torno da lei de acesso à informação pública, que passou pela Câmara e deverá ser votada no Senado após o recesso, revela o traço de um país que tem como costume inverter a ordem das coisas. Não temos uma norma para obrigar o Estado a suprir a sociedade com informações de interesse público, mas dispomos de uma lei decretando o sigilo, ou seja, para regular a exceção. O fato pode parecer estranho, mas em se tratando de Brasil, tudo é possível. Quem não recorda nossa pirâmide dos direitos? Por aqui, os direitos sociais chegaram antes dos direitos civis, invertendo a lógica descrita por Thomas Marshall. O sociólogo defendeu a tese de que as nações democráticas, a partir de seu país, a Inglaterra, implantaram primeiro as liberdade civis, a seguir, os direitos políticos e, por último, os direitos sociais.
Pior é que os nossos congressistas parecem querer inventar a roda, deixando de avaliar a experiência de países como os Estados Unidos, que dispõem de um forte instrumento de acesso à informação pública, o Freedom of Information Act, de 1966. Ali, os prazos máximos de sigilo são de até 25 anos e apenas em casos excepcionais (armas de destruição em massa, por exemplo), podem ser estendidos por mais 25 anos. Por aqui, a Câmara aprovou um prazo de 50 anos para sigilo de documentos ultrassecretos (25 anos prorrogáveis por mais 25), mas a proposta esbarra na visão do presidente do Senado, José Sarney, e do senador Fernando Collor, que preside a Comissão de Relações Exteriores, ambos defendendo o sigilo eterno.
Defender o sigilo de informações de interesse público num dos ciclos mais intensos da Sociedade da Informação parece contrassenso. Aqui e alhures, a sociedade clama por transparência, ao empuxo das correntes que avançam no vácuo deixado pela democracia representativa e nas pistas abertas pela democracia participativa. Põe-se o dedo nas feridas dos governos, cobrando-se explicações e providências dos mandatários, exigem-se ajustes nas políticas públicas, denunciam-se as tramoias e máfias que se formam nas malhas intestinas do Estado, forma-se, enfim, um gigantesco aparato de acompanhamento e controle de obras e serviços públicos. Agindo como motor do sistema de vigilância social, expandem-se as redes sociais da comunicação eletrônica propiciada pela internet, cujos efeitos se fazem sentir na pressão sobre os atores políticos de todos os espectros e instâncias. Enfrentar tal paredão de pressão, mesmo sob o defensável argumento de que o interesse público se deve fundar na segurança coletiva ou do Estado, equivale a tentar parar o fluxo civilizatório.
O fato é que os dois senadores acima citados parecem formar juízos de valor com o olho no espelho retrovisor, esquecendo que um instrumento normativo há de ser considerado na perspectiva de vir a ser a porta do amanhã. Se o Brasil continuar confinando documentos sobre a Guerra do Paraguai ou a conquista do Acre (que o próprio Itamaraty descarta como comprometedores) ou sobre outros eventos do passado remoto, estará reforçando o baú conservador, onde se escondem ideários bolorentos e retrógrados.
É evidente que nem todos os fatos socialmente significativos podem ser escancarados. Há casos que dizem respeito às razões do Estado e outros habitam o estreito território que separa a vida privada da vida pública. Ou seja, o sigilo abriga situações ancoradas na segurança da sociedade ou quando convêm ao processo investigativo promovido por autoridade. Ainda no cofre do sigilo, estão ocorrências relevantes, em particular no campo dos negócios. Resguardam-se, também, questões atinentes à imagem ou à privacidade das pessoas. Nessa área está a execrável espionagem feita pelo tabloide inglês News of the World, do magnata australiano Rupert Murdoch, que bisbilhotou a vida de cidadãos, invadindo sua intimidade, gravando conversas íntimas. Mas há casos de alto interesse público que não podem ser coibidos. Exemplo é a Operação Boi Barrica, envolvendo o empresário Fernando Sarney. O Estado foi proibido por um desembargador do Distrito Federal de publicar matérias sobre esse caso.
Na verdade, a sociedade clama é pela maximização do conceito de transparência total pelos governantes, cumprindo o princípio basilar estabelecido no caput do artigo 37 da Constituição, que trata da publicidade dos atos públicos. O princípio entra na agenda dos governantes, lembrando-se que, nos EUA, o presidente Barack Obama inaugurou o Open Government. Dos homens públicos cobram-se atitudes compatíveis com parâmetros éticos, não podendo ser escamoteados atos que atentem contra a coisa pública.
Em termos de Brasil, esse é um dos aspectos que mais geram conflitos. Gestores, parceiros e figurantes políticos flagrados com a boca na botija acham-se injustiçados. Na condição de indiciados, alegam receber da mídia tratamento de condenados. A questão é complexa, eis que emergem dois escopos garantidos pela Carta Magna: o direito à informação, resguardado o sigilo da fonte, e a justiça para todos. Os envolvidos se queixam: a visibilidade na imprensa gera condenação prévia, influindo no julgamento. Se a mídia utiliza seu potencial para noticiar e emitir juízos de valor sobre um acusado, o julgamento pode ser imparcial? O interesse individual (sigilo) deve se subordinar ao interesse coletivo (divulgação)? Outra situação diz respeito ao sigilo da informação. A quem cabe a culpa pela quebra de sigilo: a quem o rompeu ou à mídia, que acolheu a informação?
Por todos esses ângulos e, mais ainda, pela cultura patrimonialista, que viceja em todos os quadrantes do território, cujos frutos aparecem no farto noticiário sobre desmandos, enriquecimento ilícito, favorecimentos, superfaturamento de obras, a lei de acesso à informação pública aparece em boa hora. Trata-se de um avanço civilizatório. Que seja aprovada sem censura.
O País deve recebê-la com a bandeira da cidadania.
Entrevista:O Estado inteligente
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