O Estado de S.Paulo - 27/07/11
Tudo começou com a crise dos "subprimes", os empréstimos de qualidade duvidosa que recheavam os balanços dos bancos norte-americanos. Com a quebra do Lehman Brothers, em 2008, a crise propagou-se rapidamente para a Europa. Os bancos europeus também não haviam resistido à tentação dos negócios com o subprime.
A cooperação orquestrada pelo G-20, que então estreava como palco de decisões econômicas globais, e a injeção de recursos pelos governos, para sanear os bancos e conter a recessão, evitaram a crise sistêmica. Ao início de 2011, os países industrializados já emitiam os primeiros sinais de recuperação.
Mas o que era a crise de liquidez dos bancos, com o seu epicentro nos EUA, transformou-se na crise fiscal dos governos, agora com foco na Europa.
De certo modo, a crise da dívida europeia lembra a da América Latina dos anos 1980. O súbito aumento das taxas de juros nos EUA e o endividamento crescente de países da região representaram um risco efetivo de crise sistêmica. Ela foi contornada graças a um complexo processo de negociações da dívida, em duas fases. Para o Brasil, a primeira culminou no acordo de 1988, no qual estive diretamente envolvido, pelo qual o País saiu da moratória e reestruturou US$ 80 bilhões de débitos junto a bancos e governos credores. A segunda, conduzida por Pedro Malan, trouxe um desconto da dívida, da ordem de 30%, em 1994, tornando sustentável a sua amortização.
Há, porém, diferenças. As instituições financeiras tentaram a rolagem da dívida de Portugal e Grécia, de modo a ganhar tempo e evitar o risco de contágio. Mas a tentativa falhou, diante da inviabilidade de conter a insolvência da Grécia mediante a simples renovação dos seus empréstimos. Os governos europeus estão sendo forçados a promover uma reestruturação mais ampla e outras formas de alívio da dívida grega, de forma a sustar um contágio já em curso na Itália e na Espanha. Assim, a deterioração das contas públicas contamina os bancos que detêm um volume expressivo de títulos públicos depreciados. O que foi crise financeira em 2008 pode tornar-se uma dupla crise, fiscal e financeira, em 2011.
Por fim, as políticas de ajustamento prescritas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) são mais penosas no momento em que já estão instalados recessão e desemprego. Ou quando os devedores não têm, como nós tivemos, a possibilidade de desvalorizar a moeda para estimular exportações e o crescimento, pois estão atados a uma moeda comum, o euro.
Não obstante tais diferenças, existe um substrato comum. Por trás das questões técnicas e financeiras, a dívida suscita uma questão política, que está na repartição dos custos do ajustamento entre devedores e credores. O devedor demanda um pacote de salvamento maior, para reduzir os penosos sacrifícios em termos de crescimento e emprego. O credor - no caso europeu, sobretudo a Alemanha - resiste a recorrer aos recursos do contribuinte para atenuar os encargos do devedor.
Na América Latina, as políticas de ajustamento conduziram a uma década perdida. Na Europa, a consequência pode ser a saída de alguns países, como a Grécia, da zona do euro, um passo inédito, de desdobramentos imprevisíveis. Ou, até mesmo, pôr em questão o projeto político europeu.
Enquanto as atenções estão voltadas para a Europa, Washington é palco de uma batalha insólita, mais do que política, ideológica e eleitoral, entre os democratas, que consideram não ser possível sair do imbróglio fiscal sem aumentar a arrecadação, e os republicanos, que advogam um corte maior de despesas. Em artigo recente, Martin Wolf chama a atenção para a necessidade de aumentar a receita. Entre 2008 e 2012, o déficit orçamentário americano deverá passar de 0,3% a 10,9% do PIB - 58% virão do declínio na receita, por causa da recessão; 42%, de uma elevação nas despesas. Se os dois partidos não chegarem a um entendimento sobre a elevação do teto para o endividamento, o que parece inverossímil, as consequências serão igualmente imprevisíveis.
Às voltas com disputas de alto risco, de um e de outro lado do Atlântico, sem falar na crise no Oriente Médio ou na eventualidade de bolhas na Ásia, os líderes mundiais deixaram de lado o tema central dos desequilíbrios na economia global. Os saldos em conta corrente, em relação ao PIB, no Japão (3,6%), na China (5,2%) e nos países exportadores de petróleo no Oriente Médio (6,5%), de um lado, e o déficit, particularmente nos EUA (3,2%), explicam em boa medida o descompasso nas taxas de câmbio e a geração de um excesso de liquidez, que desestabilizam economias nacionais e estão na origem das novas crises globais.
Essas questões não poderão ser equacionadas de modo duradouro sem uma reforma do sistema monetário internacional, tema que já consta da agenda da Cúpula do G-20 para novembro próximo. O chamado Grupo do Palais Royal, integrado por reconhecidos especialistas, preparou a proposta para o G-20. Em síntese, num período de profundas transformações, será preciso inovar e ousar, para reforçar os mecanismos de representatividade e vigilância, coibir a expansão da dívida e dos desequilíbrios em conta corrente, com o consequente impacto sobre os fluxos de capitais e o câmbio. Adotar sanções, inclusive comerciais, como as previstas nas regras da Organização Mundial do Comércio (OMC). Por fim, reforçar a capacidade de o FMI se tornar um efetivo emprestador em última instância, com baixa ou nenhuma condicionalidade.
O G-20 até agora tem permanecido mudo em face do segundo tempo da crise. Terá condições de deliberar sobre questões tão complexas e controversas, no momento em que a economia mundial, na melhor hipótese, estará apenas iniciando a sua convalescença?