segunda-feira, maio 23, 2011

A ponta do iceberg - Sérgio Abreu e Lima Florencio


O Estado de S. Paulo - 23/05/2011
 

 

Artigo publicado nos jornais O Estado de S. Paulo (nesta página) e O Globo em 28 de abril deste ano - Sem aspas, Garcia, de Demétrio Magnoli - faz grave e equivocada acusação a artigo de minha autoria na revista Interesse Nacional, de 2008. Menciona que "as passagens cruciais de seu texto poderiam ser encampadas pelo governo chinês ou subscritas por Hosni Mubarak, Muamar Kadafi e Fidel Castro".

Indica que o meu artigo "sintetiza exemplarmente" uma "doutrina de justificação dos regimes que violam sistematicamente os direitos humanos", numa referência implícita ao Irã. Como demonstração, acrescenta: "Florêncio aponta uma tensão entre "uma visão de fortalecimento da universalidade dos direitos humanos" e "um olhar de preservação de identidades culturais consideradas ameaçadas por um mundo globalizado"".

Ora, mencionar essa tensão - parâmetro fundamental na equação dos direitos humanos - não significa defender regimes violadores.

A crítica central de Demétrio Magnoli está dirigida ao fato de que "durante oito anos o Brasil rejeitou todas as resoluções que condenavam o Irã".

Em nenhum momento do artigo defendo as nossas votações no Conselho de Direitos Humanos da ONU, mesmo porque, pessoalmente, discordei de diversas posições assumidas pelo Brasil. Diplomatas que comigo trabalharam bem conhecem as minhas críticas a tais posturas e o meu reconhecimento da importante inflexão no atual governo.

A política de direitos humanos é constituída por um conjunto de posições assumidas em instâncias nacionais, regionais e internacionais. O voto nas resoluções sobre violações em países específicos constitui vertente emblemática na configuração de tal política. Entretanto, é apenas a ponta do iceberg. O equívoco de Demétrio Magnoli é pensar que a ponta do iceberg constitui o todo.

Concordo com muitas críticas às nossas posições tanto no que se refere aos direitos humanos como ao desarmamento com relação ao Irã, país onde vivi e trabalhei durante quatro anos, de 1977 a 1981, que coincidiram com o final do regime do xá Mohammad Reza Pahlevi, o surgimento e a vitória da Revolução Iraniana. Conheci nas origens e apoiei com entusiasmo os ideais antidespóticos, democráticos e liberais que configuraram a essência dessa revolução. Partilhei com amigos a frustração de assistir ao desvirtuamento e à melancólica trajetória em direção ao fundamentalismo islâmico, à reedição de regime de repressão e tortura.

Por motivos que transcendem o mero exercício analítico e atingem a minha experiência de vida - que inclui o nascimento de um filho no Irã -, não posso aceitar as distorções de Magnoli ao caracterizar o meu artigo como defesa do atual regime iraniano. Seus rumos ditatoriais são uma dramática negação dos sonhos de liberdade que fizeram a revolução nascer e com os quais sempre estive associado por convicção e por vivência pessoal.

O artigo por mim escrito, Direitos Humanos: O Debate Internacional e o Brasil (*) - publicado juntamente com outro sobre o mesmo tema, O Brasil Contra os Direitos Humanos, de autoria do próprio Demétrio Magnoli -, tem propósitos bem distintos dos seus. Em lugar de lançar um olhar sobre a árvore (voto) e julgar, com reducionismo simplista, a floresta (política de direitos humanos), apresento exemplos concretos de atuação do Brasil pautados por papel construtivo em diversas áreas, tanto no âmbito internacional - construção institucional do Conselho de Direitos Humanos - como interno - políticas sociais reconhecidamente bem-sucedidas.

Algumas reflexões contidas no artigo continuam úteis. O Brasil, pelo estágio de desenvolvimento e pelo perfil social, conta com vantagens comparativas naturais no diálogo com o mundo desenvolvido e em desenvolvimento. Por isso, em 2006, durante o complexo processo negociador para construção do Conselho de Direitos Humanos, de que participei como embaixador em Genebra, nosso país era identificado como um articulador de consensos.

De fato, logramos aproximar posições antes polarizadas entre a União Europeia e países afro-asiáticos ou islâmicos. Também contribuímos com proposta concreta para a sobrevivência das chamadas "resoluções sobre países", instrumentos essenciais para a efetividade do conselho.

No plano interno, apesar das conhecidas deficiências, o Brasil passou a exibir visíveis avanços nos chamados direitos econômicos e sociais a partir da segunda metade dos anos 1990.

Registrei no citado artigo, sem partidarismos, a verdade histórica de que as raízes do êxito da economia brasileira residem nas reformas econômicas estruturantes empreendidas em meados da década de 1990: "Com a adoção do programa de estabilização a partir de 1994 (...) o País conseguiu consolidar um tripé até hoje preservado como pilar da política econômica".

Embora a diretriz global que prevalecia com relação ao Irã e muitos de nossos votos sobre violações sistemáticas de direitos humanos em países específicos sejam merecedores de crítica, constitui evidente exagero o título do artigo de Magnoli: O Brasil Contra os Direitos Humanos. Tampouco fica de pé o seu argumento de que o meu texto poderia ser subscrito por ditadores. Nossa política de direitos humanos tem alguns pecados e muitas virtudes. É fácil desconstruir todo um edifício de laboriosas e densas negociações com argumentos ideológicos. O difícil é separar o joio do trigo. E cultivar o trigo.