quinta-feira, março 17, 2011

Demétrio Magnoli A maldição do pré-sal

O Estado de S. Paulo - 17/03/2011

"A Petrobrás é um Estado dentro do Brasil - felizmente, um Estado
amigo", costumava dizer Lula. O primeiro elemento da ironia é
indiscutível: os investimentos da petroleira em ciência e tecnologia
são um múltiplo do orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia, e
os investimentos em cultura e comunicação social são maiores que os
dos Ministérios correspondentes. Infelizmente, o segundo elemento da
ironia é discutível.

Desde a descoberta de petróleo no pré-sal, os investimentos da
Petrobrás saltaram de R$ 16,5 bilhões, em 2006, para R$ 76,4 bilhões,
em 2010. O endividamento cresceu paralelamente, atingindo R$ 117,9
bilhões no ano passado. Desse total, quase 40% representam dívidas com
bancos públicos: BNDES, R$ 36,3 bilhões; CEF, R$ 5,66 bilhões; e BB,
R$ 4,35 bilhões. Além disso, o BNDES detém quase R$ 44 bilhões em
ações da petroleira. Sobre tais empréstimos a Petrobrás paga taxas de
juros internacionais, ao redor de 6% ao ano. Contudo o capital de
empréstimo dos bancos públicos deriva de aportes do Tesouro, que capta
a taxas de juros anuais em torno de 12%. A diferença é paga por todos
os brasileiros, ricos e pobres, que financiam a dívida pública. O
"imposto Petrobrás", um tributo oculto, mas bem real, deveria conceder
à Nação o direito de investigação das estratégias da petroleira. Mas
quem está disposto a formular perguntas que incomodam o "Estado dentro
do Brasil"?

A narrativa oficial, fixada pela bilionária publicidade da Petrobrás,
sedimentada nos livros escolares, conta a epopeia de uma empresa
triunfante, que fez do mar a fronteira do petróleo no Brasil. É uma
história de esforços hercúleos, rupturas tecnológicas, recordes de
perfuração sucessivos sob uma lâmina d"água sempre mais profunda. Mas,
e se, fora do olhar do grande público, existir uma história não
contada? Lula: "A Petrobrás é motivo de orgulho para nós. Se fosse uma
mulher, seria a mulher com quem toda mãe gostaria que o seu filho
casasse". Mas, e se, sob o rosto imaculado da mulher perfeita, existir
uma fria manipuladora, uma carreirista hábil, uma egoísta sem limites
em busca de dinheiro, poder e prestígio?

A estatal foi fundada em 1953. Logo em seguida contratou os serviços
do geólogo americano Walter Link, um renomado ex-funcionário da
Standard Oil, para avaliar o potencial petrolífero brasileiro. O
Relatório Link foi preparado entre 1955 e 1960, com base apenas em
levantamentos geológicos rudimentares. Ele recomendava que a Petrobrás
voltasse as costas para o território continental, entregando-se à
prospecção offshore. A primeira descoberta offshore deu-se em 1968 e
seis anos depois a Petrobrás identificou petróleo na Bacia de Campos.
Quando a empresa detentora do monopólio da exploração tinha apenas 15
anos, a marcha épica rumo às profundezas do mar já selava um destino:
ninguém mais se preocuparia com o onshore.

Link quase nada conhecia sobre o potencial das bacias sedimentares
onshore, que perfazem cerca de 5 milhões de km2 do território
brasileiro. Pouco se sabe até hoje. Desde 1953, foram perfurados cerca
de 24 mil poços exploratórios onshore no Brasil, um número
ridiculamente pequeno se confrontado com a prospecção em países de
tamanho comparável. Nos EUA, perfuraram-se milhões de poços pioneiros.
No Canadá, perfuram-se anualmente pelo menos 25 mil poços, o
equivalente a todas as perfurações pioneiras em terra na história
petrolífera brasileira. A prospecção em terra custa uma fração da
prospecção sob águas profundas. Os fantásticos investimentos offshore
podem resultar em taxas de retorno insignificantes. Entretanto,
redundam em imensa concentração de poder econômico e político. O
"Estado dentro do Brasil" não busca exatamente petróleo, mas o
incremento de seu próprio poder.

A descoberta de petróleo no pré-sal reproduz, em escala ampliada, os
efeitos dos primeiros poços na Bacia de Campos. Meses atrás, sob o
influxo de investimentos comparativamente modestos, empresas privadas
anunciaram três grandes descobertas de gás em terra, no Maranhão, em
bacia classificada como pouco atraente pelo Relatório Link. Indícios
recentes sugerem que podem existir maiores reservas exploráveis
onshore do que no pré-sal. As novidades, porém, não ultrapassaram o
círculo dos iniciados. Ensurdecido pela fanfarra nacionalisteira do
pré-sal, hipnotizado pelas imagens repetitivas de um Lula abraçado à
bandeira verde e amarela, as mãos sujas de óleo, o público aplaude a
nova encenação de uma farsa antiga. Homem ao mar: com vastos subsídios
públicos ocultos, perfuraremos agora uma camada instável de 2 mil
metros de sal, sob 7 mil metros de água.

"Eu penso que vai ter algum momento na História do Brasil que vai ter
de ter eleição direta para presidente da Petrobrás, e ele indicará o
presidente da República, tal é a capacidade de investimento", sugeriu
Lula em 2008. Por ora, ocorre o oposto. O "Estado dentro do Brasil"
serve aos seus próprios interesses de poder, mas serve também ao poder
de turno, fazendo política enquanto prospecta petróleo. A Petrobrás
impulsiona os negócios de empresas parceiras, moldando o comportamento
político de poderosos empresários. A Petrobrás transfere fortunas para
agências de publicidade que operam no tabuleiro da política
partidária. A Petrobrás divulga peças de propaganda governista em
período eleitoral. A Petrobrás patrocina os "amigos do rei" nos
movimentos sociais, em ONGs e fundações diversas, na esfera opaca dos
negócios "culturais".

O "Estado dentro do Brasil" sabota ativamente a Agência Nacional de
Petróleo, com a finalidade de restringir a concorrência no setor
petrolífero. Ele triunfou na formulação do novo marco regulatório, que
lhe reserva uma posição quase monopolista no pré-sal, e conseguiu
protelar por três anos a retomada das rodadas de licitações de blocos
exploratórios. "O petróleo é nosso" - e a Petrobrás, desgraçadamente,
também.