O Estado de S.Paulo
Os que reduzem tudo a poder que me perdoem, mas o evento destas semanas não foi "político". Foi a despedida, em pleno meio-dia, do senhor Ronaldo Luís Nazário de Lima, excepcional praticante de futebol, conhecido como Ronaldo Fenômeno ou, em virtude da precocidade típica dos gênios, simplesmente como Ronaldinho.
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Cronistas e jornalistas esportivos, bem como a maioria dos técnicos, são conhecidos pelo nome completo, mas os jogadores são personificados pelo primeiro nome ou por algum apelido de quatro letras: Vavá, Dida, Didi, Lelé, Mané, Cacá e Pelé. São os tais eufemismos que prezamos tanto e que permitem transformar bandidagem em malandragem, assalto em falcatrua, e mensalões em "caixa 2" partidário. Não é que debaixo do Equador não exista pecado, é que há vários tipos de pecado cujo julgamento depende dos pecadores. (Temos igualmente muitas polícias e tribunais, o que é bonança para os criminosos). O jogador de futebol, como um gladiador subversivo, pois luta dentro das regras observado de perto pelas massas injustiçadas que com ele se identificam aclamando o drible que faz cair de "bunda" o brancalhão azedo que todos consideravam racialmente superior, é assim um ser redutível a uma falsa intimidade de quatro letras e duas sílabas. Sua grandeza está em ampliar seu nome tornando-o maior (e melhor) do que o dos riquinhos, dos teóricos do futebol (que confundem sabedoria com memória) e dos filhinhos de papai (que jamais furaram um gol em suas vidas!) que deles falam com desprezo, admiração, ódio e incomensurável inveja. Porque os craques de quatro letras ganham salários de mil e tantos zeros, mas são analfabetos; e - pior que isso as "ronaldinhas" louras e comem todo mundo. Hoje - como pode? cosmopolitas e empresários. Eis as subversões rotineiramente praticadas por esses vingadores sociais que invertem os termos de nossas hierarquias, levando aos estádios um raro e nobre sopro de uma terrível (e temida) igualdade. E de uma poderosa excelência gritantemente ausente do nosso universo administrativo em geral, pautado pela mediocridade contida dos ocupantes de cargos públicos. Como lidar com esses demiurgos que roubaram o "football" dos "adiantados" britânicos e, sem ajuda do Estado, do sorriso hipócrita dos políticos com desculpas até para não fazer oposição, e dos partidos do povo cujos patrões odeiam a igualdade, deram ao povo uma arte fundada no desempenho, capaz de promover a experiência da vitória e da igualdade? Um "futibol" que veio redimir e permitir amar o Brasil?
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Comoveu-me a despedida lúcida e soluçante de Ronaldo. Tanto quanto ele fazia gols pelo selecionado brasileiro. Fiquei impressionado quando ele disse que essa despedida era uma morte.
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Todos nós morremos muitas vezes nesta vida. Na outra, para onde estamos indo, não morremos mais. A morte não existe na morte, eis o grande segredo. Ela só existe no curso de nossas vidas porque no Nada e no Eterno só há o silêncio do apito final.
Mas para quem, em algumas décadas, vive uma eternidade - como é o caso dos que, como você e gente como Charles Chaplin, que passaram aperto para comer, vestir e dormir, a orgulhosa e bela superação da miséria pelo domínio de uma arte - é como saltar por cima do Everest (subir seria pouco) ou ir à Lua nu em pelo. Só quem tem uma imensa capacidade de sublimação consegue virar-se pelo avesso e transformar-se em mestre de alguma coisa.
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Com o seu jogo de corpo, sua força e suas arrancadas, você não passava por pessoas, você saltava a doença que mata; a desesperança que paralisa; o desespero que emperra; o desânimo que não deixa começar; a inveja que impede a admiração e o amor; o ressentimento e a vingança que aprisionam no passado. O seu gol não era só um sinal de vitória, era um grito contra o analfabetismo e a ignorância que você tão bem superou. Era o sinal de que mesmo carregando o não saber formal você descobriu na vida a sabedoria da vida. Aquele jogo de cintura era sua arma contra o mau político, contra o radical que acha que pode resolver o mundo com um regime político de chumbo, o religioso que rouba o crente. Você, Ronaldinho, deu ao povo o que ele mais precisava, pois seu modo de jogar restabelecia a igualdade e, para além dela, a crença na vida e no Brasil.
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Você diz que abandonou o futebol, mas o futebol não vai te abandonar. Você é parte dele. Você é um dos raros jogadores que a ele acrescentaram algo novo. Neste universo de regras fixas e de jogadas esperadas, você inovou. Repetiu no campo o que os seus fãs não podem fazer nas suas vidas: a revolução que permite rir do poderoso, o drible que faz o ricaço arrogante e o político vazio cair de quatro, o vai mas fica que passa por cima da sabedoria dos falsos sábios e vira pelo avesso o sistema que nos fez nascer por baixo. E para terminar - que gozo... - do adversário...