O GLOBO - 23/02/11
O Egito aceitou pela primeira vez em 32 anos que navios iranianos passassem pelo Canal de Suez. Foram para a Síria, para manobras militares conjuntas. Isso preocupa Israel e Estados Unidos. A Europa teme o suprimento de petróleo da Líbia. A Arábia Saudita tem medo do que acontece no Bahrein. O mundo prende a respiração com os fatos do norte da África.
Tudo que acontece hoje em cada país, mesmo pequeno, tem efeitos muito além das suas fronteiras. Não há simplificações possíveis. Tudo é de uma complexidade estonteante. A dúvida na Líbia é para onde vão os chefes tribais, como no Egito era para onde iriam as Forças Armadas. O destino do ditador Muamar Kadafi será o resultado desse jogo tribal, cada vez mais contra ele. Ele cometeu o erro de deixar tribos, principalmente as que ficam perto de Beghazi, em situação social de abandono. A renda superconcentrada é combustível de insatisfação. O que a Europa teme é o suprimento de petróleo e gás, os negócios de suas empresas e o risco de fragmentação do país.
O Egito ainda não voltou ao normal. A bolsa de valores não conseguiu ontem abrir novamente. Teme-se que as ações despenquem. Há um enorme risco de desinvestimento no país. Um exemplo: dias antes da eclosão do movimento, a Votorantim foi ao Egito em missão comandada por Fábio Ermírio de Moraes com um plano de investimento na área de cimento. A tendência é deixar suspenso esse plano até a situação ficar mais estável. Inúmeras empresas estrangeiras suspenderam decisões de investimento. Há cinco milhões de egípcios fora do país e que mandam renda para suas famílias. Essa importante fonte de renda e divisas está também se reduzindo. Desses, um milhão trabalham na Líbia, portanto, os problemas na Líbia também afetam o Egito.
O povo que da Praça Tahrir derrubou um ditador quer tudo para já: melhores serviços na educação, saúde, maiores salários, empregos. E quer também que sejam demitidos todos os ministros nomeados por Mubarak. Vários já foram, mas o próprio chefe da junta militar, Mohamed Hussein Tantawi, foi ministro da Defesa de Mubarak por 20 anos. O primeiro-ministro, Ahmed Shafiq, também. Portanto, o novo poder nasceu no velho regime. Até na idade: um tem 79 anos, o outro, 73 anos.
A economia em crise aumenta a insatisfação. O turismo está parado, hotéis e restaurantes, vazios. Bancos com dificuldade de retornar às atividades normais. E os preços dos alimentos estão subindo. O Egito pediu à Austrália que forneça trigo mais barato, mas o governo australiano respondeu que a cotação é internacional. Além disso, a produção do país foi atingida pelas recentes enchentes.
As exportações brasileiras para o Oriente Médio quadruplicaram durante a última década, de US$2,04 bi, em 2001, para US$10,5 bi, em 2010. A Líbia não é parte desse grupo. Para lá, as vendas saíram de US$35 milhões para US$456 milhões. Houve um aumento grande de empresas brasileiras nos países árabes, como construtoras, mineradoras, e fornecedoras de alimentos. O desafio agora é manter na nova situação a mesma intensidade das relações. Mas hoje, o pior problema é como proteger as centenas de brasileiros em Tripoli e Benghazi, na Líbia.
Os países da região temem o contágio por vários motivos. Veja-se a situação da Arábia Saudita. Ela é uma monarquia como a de Bahrein, e até agora as repúblicas é que têm caído. A primeira monarquia que cair aterrorizará as outras. Bahrein é um país pequeno, uma ilhota com um milhão de habitantes, mas tem uma ponte que liga à Arábia Saudita. Do lado de Bahrein, a maioria da população é xiita e reclama que não tem seus direitos respeitados porque o governo favorece os sunitas. A Arábia Saudita tem uma pequena parte da população xiita, mas vivendo exatamente perto da ponte que a liga ao Bahrein. Para complicar ainda mais a situação, em Manama, onde a população está nas ruas protestando, está uma base naval americana de 3.500 efetivos.
A Arábia Saudita tem um governo que parece sólido, a mesma dinastia que governa o país desde que ele foi fundado nos anos 1930. O problema é que os príncipes governantes que se sucedem no cargo ainda são os filhos de Abdulaziz Al-Saud, o fundador do Reino. Ele teve 36 filhos homens. O rei Abdullah tem 87 anos e ontem voltou ao país depois de três meses de tratamento médico. Seu irmão, o príncipe herdeiro, tem 83 anos. O ministro da Defesa tem 81 anos. Essa gerontocracia governa o país de forma tirânica, tendo o Alcorão como constituição, e a Sharia como código penal. Fala-se pouco das barbaridades dos Saud porque é uma ditadura amiga do Ocidente que fornece preciosos 10 milhões de barris/dia de petróleo.
O Irã tem conseguido manter pela repressão o governo, por dois motivos. De um lado, o governo islâmico que assumiu há 32 anos montou um programa de assistência social das áreas rurais que haviam sido abandonadas pelo Xá Reza Pahlevi. Isso dá ao regime uma base de lealdade junto à população mais pobre. Segundo, o presidente Mahmoud Ahmadinejad, oriundo das Guardas Revolucionárias, aumentou o poder desse grupo militar dando a eles empregos na direção do complexo industrial estatal, que é 60% da indústria do país. No Egito, uma parte da diplomacia vinha defendendo a ideia de que o país nada tinha a ganhar hostilizando o Irã. A permissão inédita em 32 anos de que navios de guerra iranianos passassem pelo Egito é um sinal de que esse grupo está sendo ouvido. Afinal, o atual governante era o mesmo Tantawi que, como ministro da Defesa, recusou outros pedidos. O mundo está mudando rapidamente, as peças no tabuleiro se mexendo com enorme rapidez. Nada mais é impensável.