sábado, novembro 27, 2010

Merval Pereira Ainda "Tropa de Elite"

O GLOBO

O cineasta José Padilha está, mesmo que involuntariamente, no centro das discussões sobre a política de segurança pública, com a coincidência de seu filme "Tropa de Elite 2" estar em exibição com grande sucesso ao mesmo tempo em que o Rio de Janeiro expõe ao mundo, através das lentes da televisão, a guerra entre o poder público e o tráfico pela conquista de territórios na cidade, mostrando a todos o tamanho do problema que enfrentamos.

Esse será um processo longo e possivelmente doloroso, e Padilha tem razão quando diz que ele não se completará se, além das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), não for feita uma reforma da própria polícia.

O personagem Capitão Nascimento, criado pelo talento de Wagner Moura nos dois filmes dirigidos por José Padilha, transformou-se em um herói nacional e é aplaudido pelo país afora quando ataca aos socos um político corrupto.

Mesmo quando algum integrante do Bope se utiliza de métodos de tortura para arrancar informações de um bandido, a plateia quase sempre ou aceita ou até mesmo aplaude, o que denota uma distorção de valores que vem sendo discutida desde o primeiro "Tropa de Elite".

A reação de parte da população, e de setores da própria polícia, criticando o fato de as televisões transmitirem ao vivo as ações policiais, demonstra uma vontade secreta de que elas possam se valer da falta de transparência para algum tipo de justiçamento.

É natural, portanto, que o diretor José Padilha receie ver confundidos seus pensamentos pessoais com os de seus personagens de ficção que procuraram retratar uma realidade com a qual não necessariamente atores ou diretor concordam.

Talvez por isso, em sua boa entrevista no programa "Estúdio I" da Globonews, Padilha tenha se equivocado ao comentar a minha coluna de ontem, onde está escrito o seguinte: "Ontem foi dia de a realidade imitar a arte. Foi dia de torcer pelo Capitão Nascimento de "Tropa de Elite", que todos nós vimos em ação, ao vivo e a cores, nas reportagens das emissoras de televisão. Que o personagem de Wagner Moura tenha se tornado o novo herói nacional é um sinal dos tempos, não necessariamente um bom sinal".

"Ontem entraram em ação centenas de capitães Nascimento encarnados em cada um dos soldados do Bope, que o personagem do filme de José Padilha se orgulha de ter transformado em "uma máquina de guerra"".

Por uma leitura equivocada, Padilha entendeu que eu estava afirmando que ele se orgulhava de o Bope ter se transformado em "uma máquina de guerra", e me mandou um recado pela televisão afirmando que não se orgulhava de maneira nenhuma.

Esclarecida a questão, fica a realidade, que "Tropa de Elite" retrata tão bem, e por isso já foi visto por mais de dez milhões de espectadores.

Jorge Maranhão, diretor do Instituto de Cultura de Cidadania A Voz do Cidadão, que se dedica a estudar a cidadania e o que fazer para avançar nesse terreno, acha que o "eloquente nexo causal entre a violência social e a violação legal de nossas elites políticas" é uma das razões do sucesso do filme.

Ele acha que o capitão Nascimento "nasce para herói, numa cultura como a brasileira, que tem enaltecido a esperteza, e, mesmo que justiceiro, já é um avanço no rumo de uma nova cultura de cidadania".

Maranhão vê uma evolução do personagem, de uma ação voluntarista para questionador do que chama "o sistema", e considera que "começamos a avançar ao encontro do que o público anseia, o que já é extraordinário e explica o sucesso do filme".

Para o diretor da Voz do Cidadão, "o imaginário social em rica mutação" não tem sido detectado corretamente sequer pelos institutos de pesquisa, e ele cita vários casos recentes: a surpresa do ficha-limpa, em que ninguém acreditava; a surpreendente votação em Marina Silva de quase 20 milhões de eleitores que ninguém previu.

"São cidadãos querendo pautar a questão ética na política e que não estão suportando mais o nível de degradação de sua representação. Por isso que o filme faz sucesso. Apesar de nosso herói coronel Nascimento fazer justiça com as próprias mãos, o que só evidencia a omissão das instituições de Estado que ainda não apareceram para cumprir o seu papel".

O leitor Mauricio Renault de Barros Correia, analista judiciário do TRE-RJ e estudante de História (Unirio), tomado aqui como exemplar da reação média dos leitores, vê na mudança da capital para Brasília o marco da decadência do Rio, com a política de investimento e infraestrutura e investimento social limitadas às classes média e alta. A desindustrialização do município abriu espaço para a favelização, diz ele. "Bairros operários tornaram-se as comunidades carentes de hoje".

Para exemplificar o atraso econômico até o início do século, Mauricio Renault ressalta que a maior parte da economia do município está nas mãos dos funcionários públicos e dos aposentados, em sua maioria também advindos do serviço público.

Segundo ele, o crescimento urbano desordenado, sob o descaso dos inúmeros governadores do Estado do Rio de Janeiro, culminou na formação desta hidra de inúmeras cabeças que se tornou o crime organizado no estado.

"A inépcia dos governos anteriores, permitindo que facções criminosas ocupassem territórios de comunidades carentes, tomando o lugar do Estado e instituindo suas próprias leis, permitiu que a sensação de poder e impunidade dos criminosos chegasse à beira da insanidade".

A política de ocupação das comunidades carentes foi um marco no atual governo, diz ele. E, seguindo uma tendência generalizada, compara o secretário de Segurança Pública José Mariano Beltrame ao Capitão Nascimento, que "não retrocederá frente aos inimigos e coloca uma máquina de guerra contra os traficantes".