O Globo - 21/09/2010
Em 2003, o Bom Dia Brasil me enviou para Caracas. Era um momento decisivo da fratura da sociedade venezuelana. Conversei com muita gente, vi imagens fortes, acompanhei passeatas e entrevistei Chávez. Diversas vezes ouvi, de um lado e de outro, que Lula era igual a Chávez.
Sempre reagi, ofendida, falando das convicções democráticas de Lula para acentuar a diferença.
Continuo achando que Lula tem mais virtudes que Chávez, mas para quem viu aquele momento, as semelhanças com esse final de governo são assustadoras.
Uma das táticas do presidente venezuelano era atacar a imprensa. Dizia que ela abusava da liberdade que ele “concedia”, tratava os jornalistas como inimigos, acusava os jornais de serem partidos políticos, gritava em comícios que havia uma unidade entre ele e a opinião pública, como se as pessoas fossem uma massa sem diversidade de pensamento.
Lula tem criticado a imprensa diariamente. Não é novidade. Mas no discurso de sábado, ele foi ainda mais fundo no modelo chavista, num ataque desconexo e impróprio aos órgãos de imprensa que, na opinião dele, são “uma vergonha” e “destilam ódio e mentira”. Prometeu “derrotar alguns jornais e revistas que se comportam como se fossem um partido político” e firmou que esses órgãos “não são democratas e pensam que são democratas”.
A democracia não pertence ao presidente. Pela sua natureza, ela é construção coletiva. Foi construída por uma luta coletiva e só por ela será preservada.
O governante é apenas, por um tempo determinado, investido do poder de governar. Isso não lhe dá poderes divinos, nem o direito de ofender com a acusação de não ser democrata qualquer pessoa que pensa de forma diferente, ou que diz ou escreve o que ele não considera conveniente.
Por causa do que foi revelado pela imprensa nos últimos dias é que o governo demitiu, até agora, quatro funcionários: a ministrachefe da Casa Civil, um diretor dos Correios e dois funcionários do Palácio do Planalto. Ou bem a imprensa estava publicando matéria eleitoreira, e todos tinham de ser mantidos em seus lugares, ou o que foi publicado tem substância e, por isso, o governo precisa se livrar dos que se comportaram de forma inadequada.
Se todos saíram do governo, só pode ser a segunda hipótese e isso significa que as reportagens ajudaram uma depuração do próprio governo.
O presidente não tem tido serenidade, não tem exercido o papel de presidente de todos os brasileiros, ajuda a fraturar o país; como Chávez tem feito. Suas manipulações dos fatos são grosseiras, como quando disse: “A oposição tem saudade do tempo em que se governava em cima dos tanques”.
Lula desrespeitou e ofendeu inúmeros brasileiros que são oposição ao governo e que resistiram, com atos e palavras, contra o poder dos que governavam em cima dos tanques. Já os com-tanques daquela época foram aceitos na vida democrática, porque o tempo passou, e é momento de concórdia.
Do lado do presidente está, por exemplo, José Sarney, que foi diligente seguidor dos que governavam sobre tanques; outra pessoa que ele admira é o ex-ministro Delfim Netto. Existem vários. O presidente sabe.
Mas em cima de um palanque, usa seu dom de iludir.
A Venezuela tem uma história diferente tanto no governo quanto na imprensa.
Mas hoje, há semelhanças com a busca, pelo governante venezuelano, de minar a credibilidade dos órgãos de imprensa para executar seu projeto de fechamento de órgãos, suspensão de concessões, cerceamento do direito de informação e opinião. Foi o caminho da fratura da sociedade venezuelana, que não pode, nem deve ser, imitada.
Num ataque digno de Luís XIV, Lula sentenciou: “Nós somos a opinião pública”.
Errado de novo. Ninguém é a opinião pública.
Ela é diversa, tem várias facetas, se organiza hoje numa direção, muda no dia seguinte, se divide e se agrupa dependendo do tema.
A opinião pública é feita e desfeita diariamente. Não tem dono. Só os governantes autoritários acharam que podiam controlá-la e, quando conseguiram, foi por pouco tempo e com trágicas consequências.
Lula avaliou que seu legado seria reconhecido, se ele elegesse o seu sucessor.
Escolheu a candidata Dilma Rousseff, tem sido capaz de transferir votos e ela, de manter e atrair eleitores. Deveria estar contente, mas entrou num redemoinho com a excitação da campanha e aprofunda os ataques descabidos à imprensa, à oposição, às instituições. Assim, corre o risco de ganhar a eleição, mas deixando como legado uma democracia mais fraca, um padrão de comportamento do governante e do governo que abastardam o processo eleitoral, fortalecendo o grupo entre seus seguidores que tem projeto autoritário.
Chávez mantém o poder há 12 anos e permanecerá por mais tempo, mas ele é um perdedor. Hoje, a economia, a política, a democracia e a sociedade venezuelana carregam as sequelas dos seus erros e excessos.
Continuo acreditando que Lula e Chávez são diferentes, mas é doloroso reconhecer no presidente brasileiro alguns detestáveis traços do presidente venezuelano.
Nos últimos dias, esses traços estiveram em relevo