VALOR ECONÔMICO
Por Sergio Lamucci, de São Paulo
O vencedor das eleições deste ano enfrentará grandes desafios em 2011, a começar pelo fato de suceder um presidente com aprovação recorde, diz o historiador José Murilo de Carvalho. "Ex-presidentes, sobretudo os que terminam seu governo com avaliação muito positiva, têm a capacidade de se tornarem uma sombra para os sucessores, aliados ou adversários", afirma Carvalho, professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Para ele, "se exercida essa capacidade", um eventual adversário do presidente Luiz Inácio Lula da Silva "estará sob permanente vigilância e terá que enfrentar a cobrança do tipo "no meu governo etc.", que pode ter efeito desgastante". A situação de Dilma Rousseff (PT) tampouco seria confortável: "Sem voo político próprio e sem a liderança e a popularidade do antecessor e mentor, ela terá dificuldade em firmar sua autoridade e seu comando, sobretudo se houver deterioração no cenário econômico". Dessa forma, o melhor para todos, especialmente para a democracia brasileira, "seria que o futuro ex-presidente se abstivesse de interferir no governo de seu sucessor".
Além da sombra de Lula, o sucessor terá outros grandes desafios, pois vai comandar um país ainda muito desigual, apesar das melhoras recentes, em que metade da população não tem rede de esgotos, a educação é de péssima qualidade, a carga tributária é alta e os gastos públicos são excessivos. "Todas essas contas serão apresentadas ao sucessor, que não terá a garantia de enfrentar condições internacionais favoráveis, como foi o caso em quase todo o mandato de oito anos de Lula."
Entre Dilma e José Serra (PSDB), o historiador considera difícil dizer quem tende a fazer o melhor governo. "Dilma poderá dar continuidade às políticas includentes de Lula, que chamo de democráticas, o que seria bom." Mas vê o risco de que ela faça crescer ainda mais o tamanho do Estado, além de tentar aumentar o controle governamental da economia e sobre a sociedade. Já Serra representa a alternância no poder, algo bom "em si". "E ele poderá reforçar mais o lado que chamo de republicano, que se refere à boa gestão do dinheiro público e à redução do aparelhamento do Estado." Quanto ao controle do governo sobre a economia, Serra provavelmente não se distinguiria muito de Dilma, acredita ele.
Carvalho faz uma avaliação positiva de Marina Silva (PV). "É uma candidata republicana, boa demais para ganhar. É um exemplo de vida, uma mulher pública inatacável em seu comportamento, com uma clara mensagem a propósito de um tema que constitui um dos maiores problemas do Brasil e do mundo."
Ao analisar o governo Lula, Carvalho diz que, entre erros e acertos, o saldo é positivo. "Avançamos algo na redução da desigualdade e muito na redução da pobreza, dentro de um clima de liberdade e, apesar dos escândalos, sem ruptura do sistema representativo. Demos um grande passo à frente." Entre os pontos negativos, aponta a tolerância com práticas abusivas como as do mensalão e a ação dos aloprados e "uma postura quase desrespeitosa em relação ao Judiciário", criticando ainda o inchamento do Estado e a ideologização excessiva da política externa.
Membro da Academia de Letras e doutor em ciência política pela Universidade Stanford, Carvalho é autor de obras elogiadas como "D. Pedro II", de 2007, e "Os Bestializados", de 1987. Diz estar "em entressafra", ajustando-se a uma aposentadoria imposta pela legislação no ano passado. "Tenho escrito, sobretudo, artigos de revistas e capítulos de livro. Um trabalho de vulto, em que me envolvi com dois colegas e encruado há tempos, a publicação dos panfletos da independência, talvez tenha agora oportunidade de ir adiante." A seguir, os principais trechos da entrevista, feita por meio de intensa troca de e-mails:
Valor: Esta será a sexta eleição em que o país escolhe o presidente depois da redemocratização, a primeira sem a participação de Lula. Qual o significado da eleição?
José Murilo de Carvalho: Democracia política requer longo e paciente aprendizado. Cada substituição de chefe de Estado feita de maneira constitucional e legal é um avanço. Excetuando a Primeira República, que teve 10 eleições, mas que era um regime oligárquico, a sequência de seis é a maior da República. Ainda é pouco em comparação com repúblicas estabilizadas, mas é um passo à frente. Por isso, é preciso reconhecer o mérito do presidente Lula em ter resistido à tentação de um terceiro mandato, recusando-se a seguir o exemplo de um de seus amigos na América do Sul.
Valor: Como ocorre desde 1994, a eleição está polarizada entre PT e PSDB, os partidos que, segundo disse uma vez Fernando Henrique Cardoso, disputam " quem é que comanda o atraso " . Esse arranjo político tem sido benéfico para o país?
Carvalho: A frase é justa. Tanto Fernando Henrique quanto Lula pagaram o preço de suas alianças com o atraso. Isso foi cobrado de Fernando Henrique, agora é cobrado de Lula. Por mais que essas alianças frustrem e irritem os que sonham com uma democracia moderna, sem elas, em nossas circunstâncias, não teria havido a estabilidade necessária para o exercício do governo dentro de um sistema representativo. Os impasses entre o Executivo e o Legislativo teriam causado paralisia do governo, pois, como já percebera Celso Furtado, entre nós o Executivo tende a ser mais reformista do que o Congresso. É verdade que essas alianças têm causado grandes danos à República. Está aí o exemplo do mensalão. Mas é preferível lutar contra a corrupção dentro da liberdade do que nem poder detectá-la em regime de exceção.
Valor: Lula tem aprovação recorde e seu último ano de governo terá um crescimento de 7% ou mais. Lula será uma sombra incômoda para o próximo presidente?
Carvalho: Ex-presidentes, sobretudo os que terminam seu governo com avaliação muito positiva, têm a capacidade de se tornarem uma sombra para os sucessores, aliados ou adversários. No caso presente, se exercida essa capacidade, um eventual adversário eleito estará sob permanente vigilância e terá que enfrentar a cobrança do tipo " No meu governo etc. " , que pode ter efeito desgastante. Na eleição eventual de uma aliada, a situação não será mais confortável. Sem voo político próprio e sem a liderança e a popularidade do antecessor e mentor, ela terá dificuldade em firmar sua autoridade e seu comando, sobretudo se houver deterioração no cenário econômico. O melhor para todos, sobretudo para nossa democracia, seria que o futuro ex-presidente se abstivesse de interferir no governo de seu sucessor, aliado ou adversário.
Valor: Quais os principais desafios políticos que enfrentará o sucessor de Lula?
Carvalho: Além de suceder a um presidente popular, com os problemas que isso pode acarretar, há grandes desafios pela frente. Apesar de alguma melhora, o Brasil ainda detém o terceiro pior índice de desigualdade do mundo, metade da população não tem rede de esgotos, a educação foi universalizada, mas continua de péssima qualidade, os impostos estão entre os mais altos do mundo, a taxa de poupança e, portanto, também a de investimento, é baixa, os gastos públicos são excessivamente altos. Todas essas contas serão apresentadas ao sucessor, que não terá a garantia de enfrentar condições internacionais favoráveis como foi o caso em quase todo o mandato de oito anos de Lula.
Valor: Os fatos de não ter experiência político-eleitoral e não ser uma petista histórica pode fragilizar um eventual governo Dilma?
Carvalho: Sem dúvida. Não será fácil superar esses obstáculos e ainda ter que enfrentar a oposição e a sombra do antecessor e criador. Acresce-se a isso o fato de, se eleita, tornar-se a primeira mulher a governar o país no regime republicano. As pressões serão enormes.
Valor: Serra representa a mudança, ou algum grau de mudança, num momento em que a aprovação de Lula e o crescimento favorecem a continuidade. Como articular um discurso de oposição nessas circunstâncias?
Carvalho: A tarefa da oposição não é fácil. Ela tem que enfrentar a candidata de um presidente popular com as armas de um candidato reconhecidamente competente, mas sem apelo popular. A tática do candidato da posição de não confrontar diretamente o presidente, de dizer que se trata de fazer mais e não diferente, é prudente, mas não suficiente para convencer o eleitor, favorecido pelas políticas sociais do governo, a arriscar mudanças. Além de concentrar a crítica nas fraquezas da candidata oficial, ele terá que mostrar as diferenças que pretende introduzir nas políticas públicas, e isso sem dar margens à acusação de querer voltar atrás nas políticas redistributivas.
Valor: Que diferenças e semelhanças o sr. vê nas candidaturas e nos eventuais governos de Dilma e Serra?
Carvalho: É mais fácil, ou menos difícil, falar nos dois candidatos do que adivinhar seus eventuais governos. Os dois, aliás, têm a mesma origem na esquerda e coincidem em vários pontos. Quanto às candidaturas, a de Dilma é um enigma. A candidata tem feito todo o possível para se ajustar ao papel que lhe foi atribuído e às necessidades da campanha, com plástica, sorrisos, posições liberais em economia, corretas em ecologia, e democráticas em política. Mas nada disso corresponde bem à sua biografia, que está mais próxima do estatismo em economia, incorreção em ecologia e autoritarismo em política. É difícil dizer qual Dilma vai governar, caso seja eleita. Serra é um só, embora também faça seus ajustes eleitorais. Ele voltou atrás, por exemplo, em seu ataque à independência do Banco Central. Tem, como a Dilma não eleitoral, pouco jogo de cintura, um estilo centralista de governar e uma postura de desenvolvimentismo a todo custo. Suas vantagens são a transparência, a experiência política e a capacidade comprovada de administrador. Um eventual governo Serra certamente daria maior ênfase à boa gestão dos gastos públicos do que ao aumento deles.
Valor: Entre Dilma e Serra, quem o sr. acha que tende a fazer um governo melhor para o país?
Carvalho: É difícil dizer. Dilma poderá dar continuidade às políticas includentes de Lula, que chamo de democráticas, o que seria bom. Mas poderá fazer crescer ainda mais o tamanho do Estado, aumentar o controle governamental da economia, interferindo, por exemplo, na autonomia do Banco Central, e tentar aumentar o controle sobre a sociedade. Serra, por outro lado, representará a alternância no poder, que é uma coisa boa em si, e poderá reforçar mais o lado que chamo de republicano, que se refere à boa gestão do dinheiro público e à redução do aparelhamento do Estado. No entanto, quanto ao maior controle governamental da economia, não creio que se distinguiria muito de Dilma.
Valor: Depois de 16 anos de governo de dois presidentes com estilo conciliador, o país deverá ser comandado a partir de 2011 por Dilma ou Serra, políticos com pouco jogo de cintura, como o sr. mesmo disse. Quais riscos essa característica traz para o cenário pós-Lula?
Carvalho: Prefiro falar em dificuldades em vez de riscos. Como se sabe, Fernando Henrique e Lula tiveram que engolir muitos sapos, fazer muitos compromissos para viabilizar seus governos e o fizeram com ou sem caretas. Pelo temperamento, os dois candidatos terão mais dificuldade nesse campo. Mas, como o problema político principal estará na manutenção de uma coalizão capaz de fornecer os votos necessários no Congresso, imagino que ambos acabarão aceitando a receita brasileira de que é dando que se recebe.
Valor: O PMDB ganhou força ao longo do governo Lula. Para ter o apoio do partido à Dilma, Lula fez o PT apoiar o PMDB em Minas e no Maranhão. Esse avanço do PMDB é preocupante?
Carvalho: Como disse, essas alianças, apesar de constrangedoras, são indispensáveis para a governança. O que preocupa é a natureza da convivência do PT com o PMDB em eventual governo Dilma. Pela força de sua liderança, Lula foi capaz de enquadrar o PT e controlar o PMDB. Dilma terá maior dificuldade em fazer isso. Ela poderá se ver diante do dilema de ter que recorrer à ajuda de Lula, enfraquecendo a própria autoridade, ou enfrentar crises desgastantes em sua aliança.
Valor: Como o sr. analisa a candidatura de Marina Silva? Ela tem potencial para crescer impedir uma eleição plebiscitária ou será apenas uma coadjuvante?
Carvalho: Dada a polarização existente, acho que Marina Silva não passará de coadjuvante. É uma candidata republicana, boa demais para ganhar. No caso de um final de campanha muito disputado, no entanto, seus votos poderão decidir se haverá ou não um segundo turno e, caso haja, seu apoio poderá decidir o resultado final. De qualquer modo, uma campanha como a de Marina Silva só fará bem ao país. Ela é um exemplo de vida, uma mulher pública (hoje já se pode usar a expressão em sentido positivo) inatacável em seu comportamento, com uma clara mensagem a propósito de um tema que constitui um dos maiores problemas do Brasil e do mundo, a preservação das condições naturais de sobrevivência da espécie humana. Sua pregação ecológica sozinha já vale sua campanha, sobretudo quando se leva em conta que a ecologia não é forte de nenhum dos dois principais candidatos, para dizer o mínimo.
Valor: Não há um candidato explicitamente de direita na eleição, ou mesmo alguém que defenda ideias econômicas mais liberais. Por que há esse vácuo?
Carvalho: No Brasil, os políticos e os partidos têm vergonha de se declarar de direita, talvez por causa da ditadura militar. E há também ainda certo receio de assumir posição de esquerda, talvez pela mesma razão. Mas creio que, além da ditadura, a opinião pública também favorece uma tendência centrista. Às vésperas do golpe de 1964, quando a política parecia radicalmente polarizada, pesquisas do Ibope indicavam vitória do moderado Juscelino sobre Brizola e Lacerda nas eleições que viriam. Lula teve que dar uma guinada para o centro para se tornar um candidato viável. Essa característica da opinião pública força os candidatos a se afastarem dos extremos e se amontoarem em um imenso centrão sem fisionomia definida. Seria útil se houvesse partidos e candidatos abertamente de direita. Daria mais transparência à luta política.
Valor: Nas últimas semanas, Serra e seu vice adotaram um discurso mais conservador. Pode ser interpretada como uma guinada à direita?
Carvalho: Guinada ao centro. Posições extremadas em campanha são fatais. Lula o reconheceu depois de longo aprendizado. O Brasil é um país conservador.
Valor: O que explica esse conservadorismo num país tão desigual?
Carvalho: A Independência não tocou na estrutura social do país, a abolição se fez sem guerras, a República só mudou a escolha do chefe de Estado e fortaleceu as oligarquias regionais, a Revolução de 1930 nada teve de revolução, a Revolução de 1964 foi uma contra-revolução, 1985 foi uma negociação. A razão para isso é que o povo político no Brasil nunca teve capacidade revolucionária em nível nacional e só começou a ganhar força eleitoral a partir de 1945. Até hoje ele ainda é vulnerável a políticas de cooptação. Pela capacidade de coerção ou cooptação, temos as elites mais competentes do mundo, inclusive a que está no poder hoje.
Valor: Passados quase oito anos do governo Lula, quais os principais pontos positivos e negativos que o sr. vê nos dois mandatos do petista?
Carvalho: Quando Lula foi eleito pela primeira vez, afirmei que ele entraria para a história se conseguisse reduzir substancialmente a desigualdade social. Embora ainda se mantenha entre as mais altas do mundo, a desigualdade diminuiu nos últimos anos. Mas, sobretudo, de acordo dados do Ipea, houve redução da pobreza e da miséria desde o Plano Real, com grande aceleração a partir de 2003. Programas de inclusão iniciados no governo anterior, como o Bolsa Escola, foram grandemente ampliados no Bolsa Família, que hoje socorre milhões de brasileiros, e pelos aumentos no salário mínimo. Apesar dos problemas envolvidos na concepção e gestão do Bolsa Família, e dos usos eleitoreiros a que dá margem, não há como negar seu efeito includente. É o suficiente para que o governo Lula deixe sua marca na história. Outro ponto positivo foi ter tido a coragem, mesmo contra a opinião de setores do partido, de manter a política econômica do governo anterior, responsável em boa parte pela recuperação do crescimento em bases mais sólidas. Com sua política social e econômica, Lula conseguiu o feito ímpar de ser popular nos extremos da escala social, os banqueiros e os pobres.
Valor: E os pontos negativos?
Carvalho: Do lado negativo, pode-se anotar uma atitude excessivamente tolerante com práticas abusivas como as exibidas no mensalão e na ação dos aloprados e uma postura quase desrespeitosa em relação ao Judiciário. O mensalão e outros escândalos contribuíram para a desmoralização das instituições representativas. Isso é muito pouco republicano e, politicamente falando, foi o pior aspecto do governo de Lula. Podem-se acrescentar, na coluna do débito, o retorno ao inchamento do Estado, o aparelhamento da burocracia, a falta de disposição para enfrentar reformas difíceis, mas importantes, como a fiscal, a da previdência e a política, e uma política externa excessivamente ideologizada.
Valor: Como fica o governo Lula na comparação com o de Fernando Henrique?
Carvalho: Do governo Lula, acabo de falar. Creio que ele se beneficiou de uma herança bendita dos dois governos anteriores, de Itamar e Fernando Henrique, sobretudo no que se refere ao Plano Real, que o PT combateu quando foi implantado. O controle da inflação, o saneamento financeiro, garantidos no governo Lula pela ação do Banco Central, e o enxugamento das gorduras do Estado formaram um dos alicerces em que se sustenta o bom momento de que goza a economia do país. Se Lula expandiu muito o lado social, no quesito republicanismo o governo Cardoso teve melhor desempenho, apesar de alguns tropeços, como na campanha para a reeleição. Um fator importante na diferenciação dos dois governos foi o cenário internacional. Cardoso foi atropelado por uma crise externa que prejudicou seu segundo mandato, quando poderia ter colher os frutos do saneamento realizado no primeiro. Lula, na maior parte do tempo, voou em céu de brigadeiro. De um modo geral, no entanto, vejo os dois governos, e o de Itamar, como voltas de um círculo virtuoso que, se levado adiante, corre o risco de consolidar nossa democracia política e nos aproximar de uma democracia social.
Valor: Lula já se comparou a Getúlio Vargas e a Juscelino Kubitschek. Essas comparações são pertinentes?
Carvalho: Com Juscelino, certamente não. JK era um desenvolvimentista radical e um convicto democrata, mas sem grande preocupação com o social e sem apelar aos trabalhadores. O forte de Lula é exatamente o social, o popular e o sindical. A comparação com Vargas é mais pertinente, pois ele foi pioneiro em nossa história em dar ênfase à política social e em interpelar os trabalhadores. Essa comparação é, no entanto, algo irônica, uma vez que o novo sindicalismo, que teve em Lula um dos protagonistas, se apresentou exatamente como reação ao sindicalismo de origem varguista e estado-novista, acusado de atrelado ao Estado e de peleguismo. Tendo em vista a situação privilegiada que as organizações sindicais tem hoje no Estado e as posições que os sindicalistas ocupam na administração pública e nas estatais, talvez a ironia desapareça e dê lugar à nêmesis do antigo ditador. Lula também se parece com Vargas na astúcia e no pragmatismo político.
Valor: Parte da oposição aponta traços de autoritarismo em Lula e no PT, que apareceriam em iniciativas como a tentativa de criação do Conselho Federal de Jornalismo e o Plano Nacional de Direitos Humanos. Lula é autoritário?
Carvalho: Não diria que Lula seja autoritário. Ele pode ter, às vezes, um estilo pesado de fazer política, inclusive com o próprio partido dele, traços de seu aprendizado sindical. Mas negocia sempre. O PT, no entanto, ou melhor, setores do PT, têm, sem dúvida, como já se disse, o DNA da esquerda autoritária de onde vieram muitas de suas lideranças. As tentativas mencionadas acima são exemplo disso.
Valor: O Brasil ganhou peso no cenário internacional nos últimos anos, tornando-se uma economia com potencial de crescimento forte num momento em que os países desenvolvidos lutam para sair da crise, beneficiado ainda pela descoberta das reservas de petróleo no pré-sal. O país está sabendo aproveitar esse momento? Pode ir além da vocação de potência regional?
Carvalho: É um momento certamente positivo. Mas, há riscos. Tendemos a oscilar entre os complexos de vira-lata e o oba-oba, ambos funestos. Receio que estejamos caindo no segundo complexo. Os indicadores são bons e auspiciosos, mas há um imenso trabalho a ser feito e os resultados não são garantidos. O país está caindo na participação no comércio internacional, depende muito de commodities, tem grandes desvantagens devidas à má qualidade da educação, à falta de qualificação da mão de obra, ao excesso de burocracia (como é possível que seja quatro vezes mais barato criar uma empresa na China?), à baixa taxa de investimento. O petróleo como fonte de energia está sob forte suspeita, tendo em vista os riscos que cria ao meio ambiente tragicamente demonstrados no vazamento do Golfo do México. Diria que, mais que o petróleo, o combustível mais importante para que as promessas não se frustrem é o suor do trabalho.
Valor: Como o sr. analisa esses movimentos recentes da política externa brasileira?
Carvalho: A política externa representa seguramente o lado mais controvertido do governo Lula. Faço duas observações a respeito. Primeiro, ela me parece cultivar uma visão do imperialismo norte-americano mais voltada para o passado do que para ao futuro. Lembra a política externa independente e terceiro-mundista da década de 1960. Há hoje uma clara tendência à redução do poder dos Estados Unidos e uma ainda mais clara emergência de outra potência que será, com grande probabilidade, o grande imperialismo do século XXI. Falo, é claro, da China com seus 1,3 bilhão de habitantes, uma economia em crescimento acelerado e uma determinação inabalável de suas lideranças. Contra esse novo imperialismo, que poderá ser mais pesado do que o norte-americano, é que nos devíamos precaver. Segundo, o empenho em diversificar o leque das relações internacionais e em buscar maior influência no cenário mundial é mais do que justificado para um país como o Brasil e houve avanços a esse respeito. No entanto, o caminho seguido, pelo viés ideológico na escolha de alianças, está consumindo um precioso capital de simpatia internacional acumulado por Lula em seus primeiros anos. A parcialidade e o uso oportunista da tese da soberania dos Estados, interferindo em uns, como em Honduras, negando-se a criticar outros, como Irã, Guiné Equatorial, Cuba, e a desconsideração pragmatista dos direitos humanos não favorecem a consolidação da respeitabilidade regional e internacional e pode, eventualmente, frustrar, em vez de favorecer, o acesso a um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU, que parece ser um dos objetivos buscados pelo governo.
Valor: Entre os vários erros e os vários acertos do governo Lula apontados pelo sr., o saldo final é positivo ou negativo?
Carvalho: Entre erros e acertos, o saldo é certamente positivo. Avançamos algo na redução da desigualdade e muito na redução da pobreza, dentro de um clima de liberdade e, apesar dos escândalos, sem ruptura do sistema representativo. Demos um grande passo à frente.
Valor: O governo Lula está entre os melhores que o Brasil já teve ou ainda é cedo para o julgamento?
Carvalho: Ainda falta a distância necessária para colocar seu governo em perspectiva histórica. Para ficar só na República, Lula terá que competir com o quase imbatível Getúlio Vargas e suas leis sociais e trabalhistas, com JK e seu desenvolvimentismo democrático, e com o próprio Fernando Henrique Cardoso e sua estabilização da economia, enxugamento do Estado e reinício das políticas sociais. Pode-se dizer, no entanto, que Lula seguramente estará nesse time