segunda-feira, julho 19, 2010

Veja entrevista:O presidente do TRE do Rio

O poder para os honestos

Autor(es): Monica Weinberg e Ronaldo Soares
Veja - 19/07/2010
 

O presidente do TRE do Rio pede tropas do Exército para impedir que os bandidos dominem as eleições nos morros e diz que a democracia não é o regime da maioria, mas da "maioria lícita"
 
Há um ano na presidência do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, o desembargador Nametala Machado Jorge, de 67 anos, tem pela frente talvez uma das mais difíceis tarefas destas eleições. Caberá a ele fazer valer a democracia nas favelas cariocas, onde, por décadas a fio, os traficantes têm imposto seus candidatos à base de coerção e medo. Com vinte anos de experiência na Justiça Eleitoral, Nametala conhece como poucos essa realidade. Ele diz: "O processo eleitoral precisa avançar de modo a expelir os bandidos que se lançam como candidatos - e garantir que todos exerçam sua liberdade de escolha". Neto de libaneses, casado e pai de três filhos, Nametala concedeu a seguinte entrevista a VEJA.
 
A nova lei eleitoral conseguirá mesmo afastar os maus políticos?
Não há dúvida de que esses políticos deveriam ser banidos do pleito, e já, em prol da civilidade eleitoral - mas, tratando-se de uma lei nova, é precipitado dizer que todos os juízes agirão com o mesmo rigor. Como ocorre com qualquer legislação recente, não existe ainda algo como uma jurisprudência sobre sua aplicação. Estamos em um estágio em que cada magistrado terá uma interpretação muito própria, havendo aí mais margem para imperfeições. De todo modo, é preciso reconhecer que estamos diante de um avanço notável para a democracia a longo prazo. A nova lei é um marco. Não se espere, no entanto, que ela se encarregue, sozinha, da necessária moralização na política brasileira, meta ainda muito distante. É preciso lembrar que são os próprios partidos políticos os primeiros a legitimar os candidatos com ficha suja.
 
Por que os partidos acolhem esses sujeitos?
Por puro pragmatismo, mesmo que à revelia de qualquer princípio ético. Como muitos acabam alcançando votações expressivas, não raro à base de coerção e medo, eles se tornam peças valiosas para insuflar as legendas. Essa é uma lógica perversa, que trata de manter a política brasileira num patamar muito baixo. A impunidade, infelizmente, ainda não é vista no país com a devida indignação ou mesmo com perplexidade, e isso se reflete também nos partidos políticos. Refiro-me a um problema de escala nacional. No Rio de Janeiro, onde eu atuo, a presença de bicheiros, traficantes e milícias (grupo de policiais e ex-policiais que, à margem da lei, estão hoje no comando de algumas favelas) só torna todo esse cenário ainda mais preocupante.
 
O senhor poderia ser mais específico?
As áreas mais pobres e violentas do Rio estão tomadas de currais eleitorais sob o domínio desses criminosos. Ali, arregimentam-se votos em troca de presentes e favores. É coisa que se vê em outros lugares do Brasil, mas que, no Rio de Janeiro, ganhou contornos próprios à medida que o tráfico foi se alastrando e acumulando poder, sob os olhos complacentes das autoridades. Todo mundo sabe que o crime violento atinge seus mais elevados níveis de brutalidade nas áreas dominadas pelos traficantes. Então, eu me pergunto: quem, em uma favela subjugada por esses bandidos, pode em sã consciência dar seu voto a um candidato que não seja aquele indicado pelos criminosos? Ninguém, claro. Porque, se o escolhido pelos bandidos tiver uma votação insuficiente, a represália se estenderá a todos. O Rio está cheio desses políticos eleitos pelo método da coerção. O mais assustador é que eles chegam ao Congresso Nacional e se colocam na posição de legislar sobre nossos direitos e obrigações. Aproveitam para garantir ainda mais seus privilégios.
 
Como inibir a presença desses criminosos nas eleições do Rio de Janeiro?
Seria ingênuo e leviano de minha parte dizer que os bandidos serão finalmente varridos do processo eleitoral. Por outro lado, a complexidade do problema não pode servir de justificativa para que uma instituição como o TRE ou a própria polícia se exima de suas responsabilidades. Estou certo de que as ações do estado podem representar avanços relevantes.

Que tipo de iniciativa é mais eficaz no combate à ação de traficantes e milícias numa eleição?
Do ponto de vista da Justiça Eleitoral, não há outro caminho senão empreender uma fiscalização maciça e implacável durante todo o período que antecede a eleição. O objetivo é que o processo transcorra num ambiente de liberdade, em que os pilares mais elementares da democracia sejam preservados, e não sob a ditadura de um bando de traficantes, como é regra nas favelas em que eles estão no comando. Digo sempre que minha luta é pelo básico do básico: garantir que todo e qualquer candidato suba o morro sem que seja barrado pelo tráfico e impedido de fazer ali sua campanha. Nossos fiscais estão imbuídos justamente da tarefa de flagrar as barbáries eleitorais. Para coibi-las, no entanto, não existe outro jeito senão contar com a ação ostensiva da polícia.
 
Nas últimas eleições, até o Exército subiu os morros do Rio, mas não conseguiu evitar a ação dos bandidos, que impediam os candidatos sem o seu aval de fazer livremente sua campanha... 
A ação do Exército não funcionou mesmo. O reforço veio muito tarde, apenas três dias antes das eleições. Para ser efetivo, esse trabalho tem de ser duradouro e contínuo. Se o governo federal quiser dispor de seu efetivo noite e dia nas favelas, a partir de agora, serei o primeiro a aplaudir. Espanta como tanta gente por aí ainda não entendeu que estamos diante de um problema enraizado e de gravidade máxima. Suas origens estão fincadas na complacência das autoridades com o crime na cidade por décadas a fio. O que se vê hoje no Rio de Janeiro nada mais é que a versão moderna do velho coronelismo - só que com contornos mais nefastos. Basta dizer que, em alguns casos, o estado simplesmente não consegue entrar numa favela para fazer valer a Constituição.
 
Que tipo de dificuldade a Justiça Eleitoral enfrenta para atuar nesses rincões?
Os fiscais do TRE não podem subir qualquer morro, sob o risco de não sair de lá com vida. Não é exagero. Chegamos a um ponto tal que não há como fazer cumprir uma ordem judicial numa das violentíssimas favelas do Complexo do Alemão sem uma escolta policial. E a presença de policiais, por si só, já pode provocar uma verdadeira guerra. Estamos falando de lugares em que a lógica é a mesma do faroeste. Recentemente, julguei uma ação de reintegração de posse de um terreno numa dessas favelas e, para minha surpresa, o dono do imóvel preferiu desistir de ir lá reaver aquilo que era seu. Ficou paralisado pelo medo de ser repreendido. Esses absurdos que acontecem no Rio de Janeiro só vêm se somar a outros tantos do sistema eleitoral brasileiro, que afetam as eleições no país como um todo.

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aprovou recentemente uma resolução que  acaba com as doações ocultas nas campanhas. Isso é um avanço?
Sem dúvida que sim, mas sei que os partidos políticos estão fazendo pressão contra. Por quê? Simples.  Eles justamente fogem da transparência no processo, uma vez que é das doações ocultas que decorrem  várias das irregularidades flagradas em período eleitoral. Essa é uma das  raízes do desequilíbrio no jogo político. E de onde, afinal, se alimentam campanhas milionárias irrigadas por dinheiro sujo. Isso é um desvirtuamento da própria natureza da  democracia, que não é tão somente o governo da maioria - mas da maioria honesta.

Além da Ficha Limpa, o senhor citaria outros avanços recentes no cenário eleitoral brasileiro?
Certamente que um deles se deve à implantação da urna eletrônica, que conferiu, pela  primeira vez, lisura no resultado das  eleições. Qualquer um que a conteste - e ainda tem gente por aí fazendo isso - só pode ser saudosista das fraudes que tanto marcaram os pleitos no país durante décadas.  Outro progresso inquestionável foi a aprovação da lei que estabelece que os políticos fiquem sujeitos a perder  seu mandato caso sejam flagrados comprando votos. E uma dessas práticas pedestres ainda muito comuns no Brasil. Reconheço com pesar, porém, que não é fácil dar saltos no aperfeiçoamento do processo eleitoral.  Há resistências de todos os lados.  Tomados de corporativismo e sem considerar os ganhos para o país, muitos políticos tentam, e frequentemente conseguem, impedir  avanços que contrariam seus interesses.

O senhor pode dar um exemplo?
Veja  o que aconteceu com o recente artigo  que estipulou pela primeira vez no país que um candidato já eleito pudesse ter o mandato cassado, a  qualquer hora, por irregularidades  flagradas durante a campanha. Apesar  de um avanço jurídico fenomenal, no fim do ano passado os atuais  congressistas deram marcha a ré.  Modificaram o texto de modo a torná-lo mais condescendente. Agora, a denúncia contra o candidato só tem  validade até quinze dias depois de sua diplomação. Passado esse tempo, nada mais pode ser feito contra ele. É um escândalo.

Os dois últimos presidentes do TRE do Rio foram afastados do cargo e estão sendo investigados pelo Conselho Nacional de Justiça por condutas suspeitas. É difícil reaver a credibilidade do tribunal?
Dado o cargo que ocupo, prefiro não me posicionar em relação a meus antecessores, mas não há dúvida de que todos os casos que ferem a imagem de uma instituição como a que presido causam um estrago enorme. Os escândalos ajudam, afinal, a  disseminar um descrédito em relação às próprias instituições, o que é péssimo para o país. Como guardião da lisura no processo eleitoral, entendo  que um tribunal como o TRE tem no mínimo o papel institucional de dar o bom exemplo. Um dia, quem sabe, chegaremos ao padrão das nações mais desenvolvidas. Tais países não estão imunes às infrações eleitoral, mas se situam a anos-luz do Brasil nessa escala evolutiva. As eleições,  infelizmente, escancaram alguns dos  aspectos mais incômodos do nosso  próprio subdesenvolvimento.

E quais seriam esses aspectos?
Primeiro, eu me refiro ao baixo nível de educação da população brasileira, mal crônico que afeta diretamente o  cenário eleitoral. É preciso lembrar que os países que já contam com representantes políticos de mais alto nível são também aqueles em que os eleitores são mais escolarizados e tomam suas decisões com base num processo mais racional. Mesmo que haja avanços aí, o alto grau de desinformação no Brasil tem ainda redundado em más escolhas nas urnas.  Os sites da Justiça Eleitoral dão a ficha completa dos candidatos, mas falta fazer a consulta.

O senhor afirma que o cenário eleitoral de hoje ainda guarda muitas semelhanças com o de um século atrás. Como?
Os grotões brasileiros, outro aspecto de nosso subdesenvolvimento, são áreas férteis para a proliferação do velho assistencialismo e do voto motivado por ele - uma mecânica antiga. Não dá para entender o cenário eleitoral sem também jogar luz sobre o vácuo de poder deixado pelo próprio estado nesses lugares mais pobres. E justamente ali que se abrem brechas para que vicejem práticas ilegais de toda sorte numa eleição.  Veja o caso do Rio de Janeiro. Nas  favelas em que o poder público  não se faz presente, perpetuam-se currais eleitorais dominados por bandidos que nem sequer se preocupam em esconder suas táticas violentas e práticas ilegais. Em lugares assim, não dá para afirmar o mais básico: que as eleições decorrem em liberdade, como deveria ser numa boa democracia.