quarta-feira, julho 21, 2010
MÍRIAM LEITÃO Risco BNDES
O Globo - 21/07/2010
O BNDES hoje representa um orçamento paralelo. Ele financia empreendimentos que, na prática, são estatizados, escolhe que empresas devem crescer e as subsidia através do endividamento público. O que precisa ficar claro é que o banco sempre subsidiou empresários, mas a natureza do banco mudou. A escala é maior, a origem do seu dinheiro é outra, e o destino é cada vez mais discutível.
Tudo se passa assim: o governo transfere dinheiro para o BNDES através de supostos “empréstimos”.
Como teoricamente são empréstimos, não entram na dívida líquida. Na prática isso passou a ser uma das principais fontes de financiamento do BNDES.
Antes, o funding do banco era principalmente recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e do retorno dos empréstimos que haviam sido concedidos. Nos últimos anos, o Tesouro passou a encher os cofres do banco como uma capitalização travestida de empréstimo.
Só que o Tesouro se endivida a juros crescentes e em dívida de curto prazo. E o banco empresta a juros baixos e prazos longos.
Alguns dos grandes beneficiários dos empréstimos do banco são empreendimentos que o governo está apressando, na parte final do mandato, para servirem de vitrine eleitoral, como a hidrelétrica de Belo Monte, e, futuramente, o trem-bala. A maioria do empreendimento fica nas mãos do governo ou de fundos de pensão das estatais. É do governo o risco, portanto.
As empresas privadas, sócias nesses projetos, terão a vantagem de estarem em obras sem risco. E elas ainda conseguem empréstimos do BNDES para esses e outros negócios que têm interesse. O BNDES com capital que veio de endividamento público — só nos últimos dois anos foram R$ 180 bilhões — empresta para o próprio setor público ou para seus sócios diletos.
Há outra forma de atuação do banco que levanta legítimas preocupações: a reinvenção da ideia de criar “campeões nacionais”.
Dar empréstimos gigantes para empresas para que elas se tornem grandes no mundo em seus setores. Em entrevista ao “Estado de S. Paulo” no domingo, o presidente do BNDES, Luciano Coutinho, disse que tinha “até vergonha de o país não ter grandes empresas em setores que é competitivo.” Um desses setores a que ele se refere certamente é o de frigoríficos para o qual o banco tem aprovado empréstimos extravagantes. O JBS Friboi recebeu empréstimos de R$ 7,5 bilhões. Só de uma vez, o JBS fez um lançamento de R$ 3,47 bilhões em ações e o BNDES subscreveu 99,9% das ações vendidas. A família dona da empresa subscreveu os restantes 0,05%. E tanto dinheiro era para comprar a Pilgrim’s Pride Corporation, com a justificativa de ajudar o processo de “internacionalização da empresa”. Ou seja, financiar o frigorífico para ele comprar uma empresa no exterior. Em vários desses casos, o banco entrou também como sócio, subscrevendo ações das empresas. Fez isso também com a Marfrig: comprou debêntures da empresa para que ela tivesse capital e comprasse empresas nos Estados Unidos e na Irlanda. No pior caso no setor de carne, o BNDES comprou ações num total de R$ 250 milhões da empresa que logo depois entrou com um processo de falência, o Independência.
A vergonha não é não ter um grande frigorífico nacional comprando empresas no exterior, mas sim o fato de que eles precisem tanto de anabolizante estatal para crescer.
Pior, os frigoríficos brasileiros não conseguiram demonstrar que não compram carne de área desmatada. Ao final de seis meses do pacto feito com ONGs e empresas importadoras de produtos brasileiros, esses grandes frigoríficos pediram mais seis meses para comprovar se seus fornecedores são ou não de área desmatado.
Isso sim é vergonhoso.
Essa forma de atuação do BNDES recria dois vícios do passado. O Estado decidindo que empresa deve ser grande, e um banco público liderando um processo que na prática é expansionismo fiscal.
Isso acaba impactando também a política monetária porque entrará no cenário do Banco Central em sua análise para decidir sobre a elevação da taxa básica de juros.
Quando a diretoria tomar a decisão hoje na reunião do Copom, ela vai considerar, de um lado, os sinais benignos da economia brasileira, de redução da inflação e de diminuição da pressão de demanda, mas também terá que olhar os riscos futuros que esse expansionismo fiscal pode causar.
O que complica a situação do Banco Central é de novo a dualidade da política econômica. Enquanto o BC tenta conter a demanda para evitar a alta da inflação, o governo continua aumentando gastos através da atuação do BNDES ou de gambiarra para contornar limites ao endividamento público.
Foi o que acabou de acontecer esta semana com a decisão de permitir que alguns municípios se endividem acima do limite estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Nada disso, como dolorosamente aprendemos, é inofensivo. Tudo cobra a sua conta mais cedo ou mais tarde. Na obsessão de fazer o sucessor, o governo Lula está criando — ou recriando — monstrengos na área fiscal.
A mais assustadora herança para o próximo governo será essa forma de atuação do BNDES, que traz de volta velhos vícios que nos causaram tantos problemas no passado