quinta-feira, julho 08, 2010

MÍRIAM LEITÃO Amnésia seletiva

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O Globo - 08/07/2010

Tarefa ingrata é tentar ater-se aos fatos em campanha eleitoral. É da natureza das campanhas que os candidatos apresentem sua melhor versão.

Um dos temas que já está sendo objeto da guerra de versões é o Bolsa Família. Os candidatos José Serra e Dilma Rousseff estão dizendo parte da verdade, mas omitem a parte da história que favorece a outra candidatura.

Só foi possível pensar em uma rede de proteção social mais ampla a partir da estabilização.

As ideias sobre como montar um programa de transferência de renda surgiram entre economistas ligados a políticas públicas na área social. De forma embrionária começou a ser implantada por uma prefeitura do PSDB, em Campinas, em 1995.

Depois se consolidou com a implantação no Distrito Federal de Cristovam Buarque, quando ele era do PT. Deu novos passos de aprimoramento na prefeitura de Belo Horizonte de Célio de Castro, do PSB. Neste meio tempo, foi defendida como política pública federal pelo senador Eduardo Suplicy, do PT, que depois evoluiu para a defesa de política mais complexa, a Renda Básica da Cidadania, que nunca empolgou.

A ideia de que os pobres e extremamente pobres devem receber uma transferência de recursos públicos e, como contrapartida, manter seus filhos na escola é excelente. É uma política que vem sendo aplicada em outros países, como o México, há vários governos.

Ela traz riscos e tem defeitos, mas que podem ser corrigidos ao longo do processo de implementação, principalmente se for fruto de um consenso suprapartidário como no Brasil.

O governo Fernando Henrique só no meio do segundo mandato é que entendeu a lógica da proposta.

O Bolsa Escola Federal nasceu tímido, com valores baixos e foi de políticos do PT o apelido “bolsa esmola”, que a candidata Dilma Rousseff atribuiu ao PSDB.

Na verdade, foi o PT que falou isso. E falou porque no início do programa federal o valor a cada família era pequeno mesmo, mesmo quando complementado com outros valores dados eventualmente pelo estado e prefeitura.

O governo Lula quando assumiu fez uma aposta errada no programa Fome Zero que tinha sido elaborado pela sua campanha de 2002 baseado no food stamps americano. O Fome Zero nasceu velho. Inicialmente foi pensado como distribuição de um bônus de compra de alimento, era burocrático e criava várias dificuldades práticas. Um cheque da Gisele Bündchen doado na melhor das boas intenções foi revelador da dificuldade do programa de executar uma tarefa simples: abrir uma conta na qual o cheque pudesse ser depositado. Demorou meses.

Felizmente, o governo Lula abandonou o projeto original e foi para o caminho mais lógico: consolidar o Bolsa Escola Federal do governo anterior, aperfeiçoar o cadastro das famílias, unificar outros programas que também transferiam renda, elevar o valor transferido, ampliar o número de famílias atendidas.

Isso tirou o governo do atoleiro em que estava ao querer reinventar a roda. O erro foi que ao expandir, o programa foi perdendo algumas qualidades.

Uma das qualidades da ideia original era a impessoalidade.

O benefício não pode ser considerado uma concessão de um governante, porque isso impõe, a um projeto novo, vícios velhos como os do clientelismo e paternalismo. Tem que ser apresentado como parte dos direitos do cidadão.

No governo atual foi tratado como benefício dado por Lula. Essa foi a mensagem.

Em muitas prefeituras foi distribuída como benesses de um partido ou de um administrador. Na campanha, o PT quer reforçar isso e manipular a ideia de que haverá o risco de suspensão do programa caso a candidata Dilma Rousseff não seja eleita. Isso revoga o avanço que a política social permitiu.

O fato de ser direito não pode anular a exigência feita a quem recebe o benefício, como a presença dos filhos na escola. A bolsa só pode ser considerada bem sucedida, como diz sempre Cristovam Buarque, se os filhos das famílias que recebem agora não precisarem do benefício quando forem adultos por terem estudado.

Neste sentido, ela é transitória, para que no período de uma geração ou duas se consiga elevar o nível social dos descendentes dos atuais beneficiados.

Outro passo fundamental é usar o Bolsa Família e seu cadastro para mapear outros dramas sociais brasileiros e fazer da política a porta de entrada nos lares para que a assistência social faça seu trabalho de combater outros males.

Neste aspecto, ela é necessária, mas não suficiente como ação do Estado em favor dos mais vulneráveis na sociedade.

Uma das ações tem que ser a de qualificar e profissionalizar o maior número de beneficiários como uma preparação para a porta de saída.

O Bolsa Família tem provocado distorções, dependência, e tido erros na distribuição.

Tem que ser aperfeiçoado constantemente, avaliado constantemente. O debate do aprimoramento não pode ser impedido pela manipulação eleitoreira de que qualquer mudança ameaça a própria existência do programa.

Mas como disse no início desta coluna, é tarefa ingrata neste momento querer ater-se à sucessão de fatos que levaram a uma política pública que é vitoriosa, apesar das falhas. A oposição não poderá falar das falhas porque isso pode ser usado pelo governismo como comprovação da ameaça. O governo vai se esforçar ainda mais para apresentá-la como política exclusivamente dele para ameaçar eleitores. A ninguém vai interessar apresentála como ela é: uma etapa do processo de aperfeiçoamento das políticas públicas na área social. Processo que levará a novas gerações de políticas de transferência de renda.